Antes de entrar para escola, faculdade, corporação, clube ou qualquer outro grupo social, todo sujeito já nasce dentro de um: a família. E em níveis mais acalorados ou menos, a verdade é que é muito difícil passar uma vida inteira sem bater de frente com alguém deste clã unido pelo mesmo sangue. Inspirada por esta realidade que causa identificação inevitável em qualquer um, a Cia Teatro Epigenia chegou ao Sesc Copacabana no último dia 14 com sua mais nova montagem, “O Preço”, do norte-americano Arthur Miller, que apresenta dois irmãos envolvidos num embate causado por um motivo comum quando o assunto é desentendimento entre parentes.
— A peça fala de herança, divisão de bens. Quem ainda não passou por isso, vai passar. Nem que seja por uma bicicleta velha encostada. Acho que quem tem irmão vai sentir um pouco mais. Mas “O Preço” não se resume a isto — adianta o diretor Gustavo Paso, em entrevista ao RIO ENCENA: — Isto é só a base. O espetáculo dá uma visão sobre a relação familiar muito forte.
Depois de perderem o pai, os irmãos em questão – papéis de Romulo Estrela e Erom Cordeiro – se reencontram após 10 anos para definir o futuro dos móveis e objetos que estão numa casa onde passaram boa parte da infância e da juventude. Mas ao chegar uma pessoa interessada, eles passam a parecer estranhos um para o outro ao refletirem sobre o preço das escolhas que fizeram ao longo da vida, dos conflitos que não resolveram, da mágoa que perdurou… Ou seja, situações que podem acometer qualquer pai, mãe, avô, primo, irmão…
— O que o público mais comenta comigo é: “Foi difícil ouvir aquilo” (risos). Dizem que a peça toca muito, que a questão familiar mexe bastante. A maioria das pessoas tem problemas com alguém da família, não é? — indaga Gustavo, completando: — O próprio elenco se mobilizou muito com as coisas ditas na peça. Nestas relações, acho que a gente perdoa menos do que deveria. Quando você desculpa alguém de coração, é porque você ama. Afinal, é teu irmão, teu pai, tua mãe. A verdade é que é muito doloroso ter um conflito na família.
Sobre um dos momentos do espetáculo, que tem no elenco ainda Glaucio Gomes e Luciana Fávero, Gustavo Paso destaca a aspereza do diálogo. Muito diferentes mesmo sendo irmãos, os protagonistas têm visões opostas do próprio pai e da vida.
— Um diz que o outro vive num mundo de fantasia, que enquanto ele não conhecer o mundo real, não vai deixar aquele castelo de ilusões.
Nova trilogia
Fundada no início dos anos 2000, por Paso e Luciana, a companhia foi batizada devido ao primeiro espetáculo que montou, chamado “Epigenia”, de Fernando Arrabal. Em seguida, produziram “Cemitério de Automóveis” e “Oração”, também do autor espanhol. Assim, foi concluída a primeira trilogia do grupo.
Anos mais tarde, em 2014, “Oleanna” deu início a mais uma sequência de três espetáculos seguidos do mesmo autor, desta vez o norte-americano David Mamet – que teve ainda “Race” e “Hollywood. Já “O Preço” marca a largada para a trilogia Miller, que, na verdade, não foi planejada, mas sim, fruto de contenção de gastos.
A ideia inicial seria montar “Bruxas de Salém”, também do autor, mas a produção fugiria do orçamento da companhia. Graças a Thiago Russo, novo integrante do grupo, professor da USP (Universidade de São Paulo) e membro da Sociedade Miller, Paso conheceu o texto de “O Preço”, que exigiria menos custos, por ser uma peça menor.
— A Epigenia une arte e entretenimento e se auto produz há muitos anos. Na trilogia do Mamet, investimos R$ 24 mil no “Oleanna”, depois R$ 38 mil no “Race” e R$42 mil no “Hollywood”. Mas como “Bruxas” é um espetáculo muito grande, com 16 atores, nós precisaríamos de mais fôlego. Então, quando li “O Preço”, com quatro atores, pensei em fazer. É arte, mas é vendável. Esta peça vai gerar o sustento para pagar o gás, a luz, a escola das crianças — explica Paso, adiantando que, além desta nova trilogia, a Epigenia está com um projeto para trabalhar cada vez mais com textos americanos.
Assim, o projeto inicial de montar “Bruxas de Salém” segue firme na pauta. A ideia é levá-lo ao palco numa data especial.
— Fechamos uma parceria com a sociedade, e o “Bruxas” ficou para 2020, quando a cia. completa 20 anos — encerra o diretor, incerto ainda sobre a montagem e o ano de estreia que vão encerrar a atual trilogia: — Ainda não sei, vamos fazer um ciclo de leitura para escolher o texto. A gente deve definir isso em 2021. Ou talvez antes.