A coluna de hoje não pode ser outra: o filme musical e álbum visual da diva pop Beyoncé, Black is King — uma exaltação audiovisual à negritude que causou frisson nos fãs e, ao mesmo tempo, trouxe análises errôneas sobre o material. Como esse espaço é dedicado a teatro, performance, estética e arte em geral, e a obra é lotada de afrorreferências, achei pertinente discuti-la sob essa perspectiva, utilizando o conhecimento sobre África que adquiri ao longo de 17 anos (da graduação ao pós-doutorado!) estudando Literaturas, Artes, História e Filosofias do continente.
A obra é tão complexa que há pluri possibilidades de análises (eu mesma tenho material para escrever uns dez textos!), e, sinceramente, esse negócio de ser a voz única que analisa a negritude, além de universalista, é bastante ocidental e dá preguiça. Aqui, a ideia é contribuir positivamente para o empoderamento semiótico — mas não acrítico — do álbum visual. Dito isso, concordo com algumas críticas de que o empoderamento da artista é com base no capital — o que pra mim, parece óbvio, já que ela é fruto da indústria cultural no coração do Ocidente e esse filme é chancelado pela Disney.
O brilho, as luzes e, sobretudo, as estampas de animais da savana não são glamourizados para refletir a peruagem ocidental, mas, sim, a fim de potencializar a máxima de que somos um povo rico, fértil, criativo, forte e resistente. África é Ouro. Somos herdeiros dos Impérios de Gana e Mali. Não à toa, Mansa Musa — o homem mais rico da história da humanidade — é personagem de um verso de “Mood 4 Eva”: “Mansa Musa reincarnated, we on our levels” [Mansa Musa reencarnado, estamos no mesmo nível – tradução livre].
Essa também é a justificativa para o excesso de joias de ouro compondo as personagens — ótimo trabalho de direção de arte e figurino. O ouro é um metal utilizado em África desde os primórdios da antiguidade clássica africana, mais ou menos 5 mil anos antes da nossa era, com evidências de seu uso na região do Sudão e registros nas pirâmides núbias e egípcias. Os Tuareg, por exemplo, possuem uma ourivesaria secular e tradicional. (Inclusive, faço aniversário mês que vem, no mesmo dia que a Bey, e tô aceitando uma joia africana de presente!)
Eu sou uma fã mediana de Beyoncé, daquelas que conhece as músicas, mas não sabe cantar nenhuma inteira. Acompanho a cantora desde a minha adolescência, na época em que fazíamos cover do Destiny’s Child nas festinhas após a escola (bons tempos de Faetec!) e me imaginava cantando “Crazy in love” ao lado de Jay-Z, de quem, naquele momento, gostava mais do que da Diva B.
O mote para Black is King é o clássico infantil O Rei Leão (1994/2019), cujas referências permeiam toda a obra. Vemos, portanto, Simba, Mufasa, Scar e Rafiki (esse em interlúdio) costurando a narrativa. A morte do rei Mufasa em todas as versões me emociona, e, se na animação a causa é um estouro de manada provocado pelas hienas a mando do vilão, o invejoso Scar, na performance, são representados por motoqueiros, uma referência explícita ao filme de 1973 Touki Bouki: a viagem da hiena, do senegalês Djibril Diop Mambéty.
O funeral do rei é muito espiritualizado. Todos de branco — cor que simboliza a passagem para a morte nas várias espiritualidades africanas — e, ao som de “Nile”, Beyoncé conduz o funeral como uma Oyá Igbale, orixá iorubá, que veste branco e conduz os espíritos ao mundo dos mortos.
Scar sempre me chamou atenção e, no filme, ele é um misto de homem e leão em um belíssimo trabalho de maquiagem e arte, trazendo o preto e o vermelho, as cores de Exu, aquele que leva o caos para trazer o equilíbrio. Tudo isso ao som da música “Scar”, cuja performance culmina na morte de seu irmão e rei.
Cores como vermelho, preto, azul e branco conduzem a paleta da produção, o que ressalta, em contrapartida, o colorido das outras tonalidades (África é cor!), que se misturam nos tecidos acetinados e brilhosos, trazendo uma explosão visual de luxo, riqueza e realeza.
A estética da obra é totalmente africana, mas Beyoncé não é a primeira artista renomada afro-americana a beber nesta fonte. Nina Simone, Miles Davis e o movimento Harlem Renaissance da primeira metade do século XX também se banharam nessas águas. Aqui no Brasil temos nomes como Jorge Ben, Gilberto Gil, entre outros, que também já trabalharam essa estética civilizatória anteriormente.
Esses artistas, portanto, utilizam o que eu chamo de “Espólio de Maafa”: o direito legítimo que pessoas negras têm de se nutrirem de qualquer fôlego de Vida que venha de África, principalmente porque as afrodiásporas surgiram a partir de um processo alheio à nossa vontade, já que fomos sequestrados e escravizados de forma irreversível (ninguém quis vir pra cá e a gente também não tem como voltar). A intelectual afro-americana Marimba Ani chamou esse fenômeno de Maafa, ou seja, a desgraça coletiva negra que se inicia com a invasão ao continente africano com fins de dominação, perpassa pelo sequestro e desterro de nossos ancestrais na escravidão e se corporifica na atualidade com o genocídio do povo negro e seus múltiplos tentáculos. É como se Beyoncé, utilizando o poder semiótico e pedagógico da Arte, abrisse mais um caminho para reumanizar a população negra. E isso, por si só, é poderoso.
O afrofuturismo dialogante com a cosmologia Dogon e Dagara é um dos principais fios condutores estéticos. Esse movimento cultural oficialmente iniciado com o jazzista, pianista, poeta e filósofo afro-americano Sun Ra, a partir da década de 1950, tem como base a filosofia cósmica desses povos. Sabia que os Dogons fazem leitura dos astros desde a antiguidade clássica? E que, para os egípcios, o ano novo é marcado pelo aparecimento da estrela Sirius no céu, tradição que o povo Maia também seguia?
As cenas de “Find your way back” gravadas em um deserto (do Saara, talvez?) remetem às civilizações clássicas africanas de Kemet (Egito), Núbia/Kush (Sudão) e Axum (Etiópia). Esses territórios possuem construções piramidais, como as ruínas de Meroé e de Napata — capitais do reino Kush na antiguidade —, além das famosas pirâmides egípcias, que na performance da música aparecem na sombra em um “fly over” (grande plano geral do alto).
As culturas dessa região — Chifre da África — conduzem este momento da obra. O lugar que conhecemos como Etiópia é um dos berços das religiões judaico-cristãs, além de ser território sagrado do rastafarianismo, religião diaspórica que tem Marcus Garvey como profeta. Para quem não sabe, Garvey é um dos mais importantes nomes do nacionalismo negro pan-africano do início do século XX. A sua instituição para o desenvolvimento e o progresso dos negros no mundo — UNIA — é uma inspiração para quem quer pensar em organização e mobilização. Outra curiosidade: os pais de Malcolm X, líder negro afro-americano, eram membros da UNIA de Marcus Garvey, e o Ministro Malcolm explicita em sua autobiografia o quanto é influenciado pelo garveyismo.
A bandeira pan-africana (vemelha, preta e verde), que completa 100 anos este ano, metaforiza a compreensão do legado não só de Marcus Garvey, mas também de W.E.B. Du Bois, Langston Hughes, Kwame Turé, Kwame Nkrumah, Patrice Lumumba, Thomas Sankara, Amilcar Cabral e Samora Machel, apenas para citar alguns homens que são símbolos da luta política negra em África e na Diáspora.
Voltando a “Mood 4 Eva”, o pássaro íbis ao fundo da mesa de café da manhã traz a referência à deidade kemética Thoth, deus do conhecimento e da sabedoria, do calendário e da lua, criador do Medu Nter (hieróglifo). Graças às aulas de filologia na Faculdade de Letras/UFRJ, sei que essa é a base etimológica das palavras em língua inglesa “thougth” (pensamento) e “think” (pensar). Tá entendendo a profundidade?! É tipo um “levanta e anda” em uma cena. Arte pura! Vale ressaltar que, reza a literatura, o íbis é a última ave a desaparecer antes de um furacão e a primeira a surgir depois de a tempestade passar. Seria mais uma mensagem nas entrelinhas? Segundo alguns intelectuais e historiadores como Elikia M’bokolo, Joseph Ki Zerbô, Molefi Asante e Carlos Moore e o compilado “História Geral da África” da Unesco, os séculos XX e XXI correspondem ao período da história africana e afrodiaspórica chamado de Renascimento Africano, e, para mim, esse renascimento é artístico, filosófico, cultural e educacional.
Na minha compreensão, o filme também fala sobre ancestralidade cíclica, uma concepção de tempo, vida e morte muito comum nas diferentes culturas africanas, como, por exemplo, a bakongo, que foi herdada pela afrodiáspora, principalmente nos cultos religiosos de candomblé, vodum e santeria. Somos início, meio e início, como fala o filósofo quilombola Nêgo Bispo. Apesar de Black is King se passar em uma época anterior à história de O Rei Leão, o fio narrativo é o mesmo, seguindo os mesmos eventos, o que me leva a pensar junto com o filófoso bakongo Fu Kiau, quando ele diz que o tempo é um eterno retorno que sentimos quando captamos pela memória os acontecimentos sociais e factuais que o marcam. Isto é, somos os ancestrais do tempo presente, herdeiros da experiência ancestral passada e construtores da ancestralidade futura.
A ancestralidade também pode ser via de leitura para o personagem em azul que costura todo filme, principalmente na performance com Beyoncé, como uma metáfora visual da dimensão ancestral do Ser, aquela que vincula os viventes com os espíritos da linhagem. A coreografia dos dois é a mesma, o que reforça essa perspectiva, pois, na filosofia kemética (antigo Egito), a ancestralidade é um Sheut, isto é, uma sombra que nos acompanha e compõe o nosso Ser. Na performance de “Already”, a cena de abertura com vários ancestrais azuis na árvore reforça a referência, pois as árvores são a morada dos ancestrais para a maioria dos povos de África de origem bantu. Só pra constar, no candomblé no Brasil temos o orixá Iroko, o nkisi Tempo e o vodum Loco como entidades ancestrais arbóreas.
As máscaras e pinturas presentes no filme partem de plurirreferências do continente que vão dos povos do Benin, passando pelos Akan e Mandingas, aos da África Oriental, como Sereres, Macuas, Macondes, Chopes, Rongas. O azul na obra do artista plástico e quimbanda moçambicano Malangatana Valente referencia o onírico que pensa o amanhã, enquanto o vermelho representa os traumas das guerras coloniais. Talvez esteja aí um caminho para analisar a cena em que homens negros vestidos em ternos de linho azul pulam lado a lado, igual aos guerreiros massai.
Para além disso tudo, vale mencionar as seguintes referências: os murais Ndebele no cenário da festa de casamento; a estética Zulu no figurino e cenário referente à Simba e sua família — atenção à coroa, que é muito parecida com a retratada na iconografia de Chaka Zulu, herói da resistência deste povo; as coroas de flores na cabeça de algumas personagens remetem ao povo etíope Suri/Surmas e a toda uma estética que atrela o belo à força vital da natureza; e as mulheres passando tinta vermelha nos cabelos, que fazem parte do povo da Namíbia e Angola, Himba, cuja presença seminômade em África remonta a 60 mil anos.
Há ainda uma forte provocação sobre descobrir quem nós somos. A questão filosófica apresentada a Simba em diferentes momentos de sua jornada metaforiza não apenas a busca pelo autoconhecimento, como também a busca da própria diáspora em relação à história positiva de África. O álbum pode ser lido como possibilidade de caminho para esse conhecimento, e a cantora aparece como arquétipo de matriarcado africano em que ora incorpora Het Heru, ora Mami Wata, ora Oshum, ora Oya, ora Sarabi, ora Nala — as duas últimas representações da “Madre-Simba” (“mãe-leoa”), senhora protetora da nação, símbolo de nobreza e realeza pros povos Sandawe da África Oriental.
Enfim, são tantas afrorreferências que não consigo esgotar aqui. Não à toa o importante livro Black Gods and Kings, do historiador Robert Ferris Thompson, aparece em cena para desenhar ainda mais o recado que Queen Bey está mandando para o mundo: Black is King!
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