O que passa na cabeça de uma criança? O que passava na sua cabeça, quando você era criança? Qual era a lógica que você seguia? Provavelmente, você não lembra. Eu também não. Retomar isto seria um esforço, um exercício. Mesmo porque, na época, nada era muito elaborado; eram impressões, reações espontâneas.
Agora pense em uma obra dedicada a recuperar este imaginário, tão especial e único, e ainda destrincha-lo, expressá-lo através de palavras precisas, o vocabulário de um adulto com pleno domínio da língua portuguesa.
“Nu de botas”, livro de Antonio Prata, é um conjunto de contos sobre sua infância. Mas, como o próprio autor ressalta no programa da peça, o livro foi escrito “não tentando ver a criança que eu fui através dos olhos do adulto que eu sou, mas buscando enxergar o mundo, de novo, do jeito que eu o via aos três, quatro, cinco, seis”. A mágica acontece, já no livro. Vemos uma criança narrando suas experiências, vemos o mundo como ela vê. Mas mágica ainda maior é exprimir a mente da criança através da linguagem de um adulto, a eloquência de um escritor!
Fica a questão: se o autor tivesse conseguido se transportar para a mente de sua criança, mas comunicasse esta experiência também à maneira desta criança, teria conseguido expressar, traduzir em palavras, todo este universo? O vocabulário bastaria? Creio que não. A maestria é, portanto, dupla: voltar no tempo, e descrever o processo.
No teatro, ela é tripla: transformar em peça. Em cartaz no Teatro III do CCBB, “Nu de botas” é o espetáculo baseado na obra de Antonio Prata, com dramaturgia de Cristina Moura e Pedro Brício. Idealizada e dirigida por Cristina Moura, a peça consegue traduzir a magia do livro, e ainda somar a magia da cena, com cinco atores personificando (sem infantilizar) a mesma criança que narra suas experiências. São adultos falando! São palavras maduras, precisas. Gestos, marcações, partituras corporais. Mas vemos uma criança. Alguém me explica?
A cenografia traz texturas e cores imprecisas, com formas que, com maior ou menor esforço, conseguimos discernir. Como a mente de uma criança: o mundo está sendo apreendido, interpretado; nada é muito delineado ainda, nada claro, mas tudo está ali, e atiça a nossa curiosidade.
Os figurinos de Ticiana Passos vestem também este meio do caminho: não infantilizam os atores, mas também não os definem como adultos. Existe uma despretensão no ar, mas não a ponto de chamar a atenção para ela.
Dos atores, o que falar? Inez Viana, Isabel Gueron, Pedro Brício, Renato Linhares e Thiare Maia Amaral são adultos e são crianças ao mesmo tempo… São seres humanos tentando compreender o mundo em sua imensidão e complexidade.
À Cristina Moura: nunca vi, no teatro, o imaginário infantil sendo abordado com tamanho respeito, inteligência e sensibilidade.
Um abraço e até domingo que vem!
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