“Eu, Mãe” retrata a experiência de Cristina Fagundes como mãe, com direção de Alexandre Barros, Daniel Leuback e a própria Cristina Fagundes. Essa conjunção de registro pessoal e encenação abriga, ao mesmo tempo, as maiores belezas e estranhezas do espetáculo.
Tendo como palco a cozinha da Casa Rio, em Botafogo, a montagem não poderia ser mais televisiva. No entanto, ela também abarca ações marcadamente teatrais (como cantar ao microfone ou dançar forró “ocupando o espaço”), algumas das quais parecem não casar com a linguagem intimista, como operar a própria iluminação. Ao mesmo tempo, existem momentos de inigualável beleza, por exemplo: a atriz enche seu copo d’água em um filtro, deixando-a derramar… e simultaneamente narra uma memória de chuva, fazendo com que a sonoplastia da ação descrita coincida com o som da água caindo no chão.
Essa mistura de ações cotidianas e ações teatrais não é arbitrária. A própria Cristina afirma, no início, que sua intenção é fazer um registro do seu amor e do papel de mãe, a ser mostrado para suas filhas quando elas ficarem mais velhas. É interessante notar como, nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto sim. A mola mestra é o registro; a encenação é só a linguagem escolhida para compartilhar esse registro com os espectadores, em um ato de generosidade humana, mais do que artística. Neste sentido, não se trata de destacar a arte existente na vida, nem de educar o olhar do público: é doação pura. É algo que poderia ficar restrito a si, como “A última gravação de Krapp”, de Samuel Beckett, a uma família, mas que se decidiu dividir.
E quando se divide, e via encenação, outros fatores entram no jogo, como a ressignificação de ações cotidianas: a água que se torna som incidental, o ato de divulgar áudios pessoais ou de falar a uma câmera de celular que grava a apresentação. Os áudios (das próprias filhas e de um dos diretores) se tornam interlocutores, assim como a câmera (público futuro), que passa a fazer parte do público presente, da mesma forma como este passa a ser incluído no seio daquela família, no presente e no futuro. No dia em que assisti, estavam na plateia a mãe e o marido de Cristina, o que amplia ainda mais a impressão de indissociação entre espectadores e membros da família.
A sensação de estar fazendo parte de algo único é inevitável, seja pelo privilégio de estar entre os poucos espectadores que partilharam da história daquela família, seja pela particularidade de ver ações banais tentando (e conseguindo) ser teatrais, e não o contrário.
Um abraço e até domingo que vem!
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