Após a polêmica de sua escalação para viver Dona Ivone Lara no musical que vai homenagear a grande dama do samba a partir de setembro, Fabiana Cozza decidiu abdicar do papel. A decisão, noticiada na coluna da jornalista Marina Caruso, no jornal O Globo, foi confirmada pela própria cantora, de 42 anos, numa carta postada em sua página no Facebook.
Desde que foi anunciada como intérprete da sambista da fase adulta até a fama em “Dona Ivone Lara – O Musical”, Fabiana vinha sendo pivô de críticas feitas por inúmeras pessoas, principalmente integrantes de movimentos negros, por ter um tom de pele “mais claro” que o da homenageada. Muitos críticos questionavam por quê não fora selecionada uma atriz negra para representar um dos maiores ícones da cultura afro-brasileira. Nem mesmo sua relação íntima com o samba – ela foi vencedora do Prêmio Música Brasileira 2005 na categoria “Melhor Cantora de Samba” – e com a própria Dona Ivone – elas já gravaram e se apresentaram juntas – foi capaz de minimizar o descontentamento com a escolha pelo seu nome. Tampouco o fato de a decisão de escalá-la ter partido da própria família da sambista.
Na última sexta-feira (01), o RIO ENCENA entrou em contato com Elísio Lopes Jr., autor e diretor do musical, que se disse surpreso com as manifestações contrárias à opção pelo nome de Fabiana. Ela afirmou que esta foi uma escolha “orgânica, verdadeira” por ter partido da família de Dona Ivone; pela relação de Fabiana com o samba e com a homenageada; e pela cantora, filha de mãe branca e pai negro, ser negra. Na entrevista, ele afirmou que Fabiana também ficara surpresa com a rejeição, mas que respeitava as manifestações, muitas das quais falando até em boicote à peça.
Confira abaixo a postagem de Fabiana Cozza na íntegra:
Fabiana Cozza dos Santos, brasileira
Nascimento: 16 de janeiro de 1976
Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca
Pai: Oswaldo dos Santos, negro
Cor (na certidão de nascimento): parda
“Aos irmãos:
O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres – que escuta é lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.
Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo. Todas são as minhas memórias.
Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas.
Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam conosco. As mulatas.
Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão pelos donos e colonizadores brancos.
Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola. Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai, minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas…
Ao lado de vocês, irmãos.
Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele comemorando na praça a nossa liberdade.
Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua passagem e precisa de paz.
Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós.
Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.
Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque acredito num mundo feito de gente e afeto.
Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter, desumano.
Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo, lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.
Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos covardes.
Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.
Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não tem cor”. E a gente chega lá.”
Fabiana Cozza