Minha paixão pelo TEATRO é tão imensa, que, quando acabo de ver montagens que irão me marcar para o resto da minha vida, sinto-me sufocado, faltam-me palavras, para expressar toda a minha alegria. Fico possuído por uma euforia contagiante, sinto-me quase a flutuar e agradeço, aos DEUSES DO TEATRO, por terem me conduzido àquele espetáculo, que me emocionou ao extremo.
Há alguns dias, saí, em estado de graça, do Teatro III, do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com a plena certeza de ter assistido à sexta grande produção deste ano, por aqui, até então, que merece a chancela de “obra-prima”.
O espetáculo em questão chama-se “ELA” e já se tornou um grande sucesso, de público e de bilheteria, logo na semana de sua estreia, com todas as sessões esgotadas. Tudo o que eu disser sobre a peça será pouco. Não é para se ouvir falar sobre ela ou para se ler sobre ela; é para se assistir a “ELA”.
Tudo começa por onde tem, realmente, de começar, ou seja, pelo magnífico texto, de MÁRCIA ZANELATTO, que, só pelo fato de ser genuinamente nacional (não uma tradução ou adaptação) e ser universal (faria sucesso em qualquer língua, se montada a peça em outros países) já ganha destaque, em relação aos outros que me agradaram, sobremaneira, este ano, até o momento.
MÁRCIA aborda um tema, com muita delicadeza e, ao mesmo tempo, comprimindo seu indicador numa ferida incurável e na qual poucos se sentem à vontade para tocar. Falar de dramas que envolvem doenças, principalmente as incuráveis, é uma seara difícil de ser percorrida. Não para MÁRCIA, que o faz de uma maneira ímpar, lindamente.
O título da peça já é genial. “ELA”, como pronome pessoal, e não um nome próprio específico, poderia, de uma maneira generalizada, se referir a uma das protagonistas, representando todas as pessoas (ELA = pessoa) que contraem uma terrível doença degenerativa, conhecida como “ELA”, que parece ser a intenção da autora, ao batizar seu texto.
ELA é uma sigla, que significa “Esclerose Lateral Amiotrófica”, que nada mais é do que a fraqueza muscular secundária, por comprometimento dos neurônios motores, cuja principal característica reside na degeneração progressiva dos neurônios motores no cérebro (neurônios motores superiores) e na medula espinhal (neurônios motores inferiores); ou seja, estes neurônios perdem sua capacidade de funcionar adequadamente (transmitir os impulsos nervosos).
Quando os neurônios motores não podem mais enviar impulsos para os músculos, começa a ocorrer uma atrofia muscular, seguida de fraqueza muscular crescente. A doença compromete o raciocínio intelectual, a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato. Na maioria dos casos, a Esclerose Lateral Amiotrófica não afeta as funções sexual, intestinal e vesical.
Perdão, pelo tom didático, que me consumiu muitas linhas, para, valendo-me de pesquisas, falar sobre a doença, mas achei que isso fosse pertinente, para que se entenda a extensão do trabalho de MÁRCIA, a qual, sem utilizar tantas palavras, como eu fiz, e num viés bem objetivo, em linguagem para leigos no assunto, também o faz no seu valioso texto.
Acima de tudo, ao que me parece, a peça tem a intenção de chamar a atenção do público para essa terrível doença, promovendo uma reflexão sobre as relações humanas em diálogo com a realidade imediata.
O texto foi encomendado, por PAULO VERLINGS a MÁRCIA ZANELATTO. Escritora e dramaturga, premiada tantas vezes, não resta a menor dúvida de que este é seu melhor texto, pela delicadeza e cuidado, no trato do tema, além da clareza como ele é mostrado, por meio de diálogos muito simples, na forma, e profundos, no conteúdo, capazes de prender a atenção do espectador, desde a primeira cena.
A abordagem da temática, em si, já é interessantíssima. MÁRCIA poderia ter criado o conflito, envolvendo um casal heterossexual, idoso, tendo o marido como o portador da doença, já que esta, normalmente, se manifesta mais nos homens, brancos, na faixa etária acima dos 60 anos. E essa vítima poderia ter uma profissão liberal, por exemplo. Mas o que fez ela? Cria mecanismos dramáticos, para a valorização de seu texto. E acerta em cheio!!!
Elegeu, como a enferma, uma bailarina, coreógrafa, de 32 anos, lésbica, cheia de vida interior e vivendo um lindo caso de amor com sua companheira, ISABEL. Pode parecer, até, crueldade, por parte da autora, entretanto nada surgiu por acaso.
A precocidade, na manifestação da doença, além de ser um fator “complicador” para o enredo, é um indicativo de que a vida é um sopro, frágil, tênue, que pode se esvair no espaço, quando menos esperamos; que ninguém está livre de ter sua trajetória de vida impactada, bloqueada por um infortúnio, que não atinge postes ou seres inanimados, em geral.
A profissão da personagem é outro elemento que potencializa a questão. Como uma doença que limita os movimentos pode encontrar, logo, o endereço de alguém que vive, profissionalmente, deles? Isso é muito forte.
E o fator do gênero, uma mulher que ama outra, é um gancho para que a autora possa pôr um foco sobre um assunto tão em evidência, que merece, mais e mais, estar em pauta, para que se possa discutir o respeito às diferenças, ao ser humano, quanto à sua sexualidade. Sem levantar bandeiras, MÁRCIA mostra uma relação homoafetiva tão bonita, tão saudável, tão respeitosa, que não chega a ser quebrada, mas que se vê abalada pela invasão de uma “intrusa” indesejável. A doença as fortalece, na relação, mas cobra um alto preço por isso.
A engrenagem do texto é ótima, com cenas curtas, impactantes, sem nenhuma gordura. O espetáculo dura justos 60 minutos, mais que suficientes para deixar a plateia acesa, elétrica, aturdida e cúmplice das personagens. MÁRCIA não perde a oportunidade de jogar com um pouco de humor e de fazer críticas, pessoais e políticas, a nomes e instituições presentes nos noticiários de hoje. Um trabalho esmerado, de mestra.
Outro primor é a direção, de PAULO VERLINGS, em seu segundo trabalho nessa área. VERLINGS demonstrou ter assimilado, profundamente, as intenções de MÁRCIA e, com muita sensibilidade, foi tirando a trama do papel, materializando-a, de forma inventiva e bela.
Falar da interpretação do trio de grandes atrizes é uma função assaz fácil e simples. Bastaria dizer que o trabalho apresentado por CAROLINA PISMEL, ELISABETH MONTEIRO e PATRÍCIA ELIZARDO é daqueles que mexem com a sensibilidade de quem saber apreciar a arte de representar. Cada uma delas compõe, de forma brilhante, sua personagem, igualando-se, no nível de interpretação, com um levíssimo destaque para CAROLINA, talvez, por conta da magistral cena em que ela “discute” com Deus, pela “sacanagem” dEle para com ela, tirando-lhe o que de mais precioso ela poderia dispor: seu grande amor, e na flor da idade. Já tive a oportunidade de ver CAROLINA atuando, em papéis totalmente diferentes, e se saindo tão bem em todos, que este é mais um para provar a sua grande versatilidade, como intérprete.
ELIZABETH carrega o grande mérito de emocionar o público, sem se deixar vitimizar, sem permitir que a personagem caia nas raias do piegas, do chato. Para isso, conta com o auxílio do texto. Seu amor por ISABEL é tão grande, que ela é capaz de mentir para a companheira, fingindo não mais amá-la e desejando terminar o relacionamento, apenas para não fazê-la sofrer.
PATRÍCIA, apesar de eu sempre ter gostado do que ele me ofereceu, no palco, se presta ao seu melhor trabalho, como atriz, superando as minhas expectativas, que já eram muitas.
Esta peça conta com um cenário e uma luz que chamam a atenção de qualquer um, pela simplicidade, criatividade e genialidade. Duas obras-primas, principalmente o cenário, que leva a assinatura, de MINA QUENTAL e ATELIER NA GLÓRIA.
O cenário é formado por apenas três estruturas, três painéis, confeccionados com tubos de PVC, de calibres (não sei se é o correto nome técnico) diferentes. Todos com lâmpadas nas extremidades. Eles são móveis, em determinados momentos, avançando e recuando, em direção ao centro do palco, participando, plasticamente, das emoções expressas e/ou sugeridas pelas cenas, assim com ocorrem variações de intensidade e piscares das lâmpadas. Representam, em suma, a indecifrável e frágil engrenagem da mente humana.
A iluminação leva a grife de FERNANDA MANTOVANI e TIAGO MANTOVANI.
MARCELLO H, aqui, nos brinda com seu terceiro grande trabalho de direção musical, neste primeiro semestre, o que já o credencia a prêmios. É impressionante o grau de sensibilidade e de percepção ativa de MARCELLO, para escolher e selecionar os estímulos sonoros adequados a cada cena!
Um crédito precisa ser dado a LAVÍNIA BIZZOTTO, no que diz respeito à direção de movimento, com destaque para a segunda cena da peça. Belíssimo trabalho!
Os figurinos são de FLÁVIO SOUZA, que, mais uma vez, consegue acertar a mão, com precisão e adequabilidade.
VINI KLESSE, no visagismo, e VERÔNICA MACHADO, na preparação vocal, também contribuem para a grandeza do espetáculo.
Não restam dúvidas de que “ELA” não é espetáculo para ficar apenas um mês em cartaz, com espectadores disputando ingressos de possíveis desistências. Merece novas temporadas, em espaços que comportem um número maior de pessoas, pelo que torço bastante, invocando, mais uma vez, a ajuda dos DEUSES DO TEATRO.
Na última semana, desta primeira temporada, haverá duas sessões por dia, uma às 16h e outra às 19h30min. Eu já revi.
Dúvidas, críticas ou sugestões, envie para gilberto.bartholo@rioencena.com.