Danada da vida porque a águia vivia devorando seus rebentos, a coruja, certo dia, decidiu exigir que o desafeto parasse com tal hábito alimentar. A ave de rapina topou de pronto, mas, para que não houvesse nenhum mal entendido futuro, perguntou como se certificaria de quais filhotes poderia ou não comer, afinal, ave recém-nascida é tudo igual. A resposta da penosa de olhos esbugalhados veio com rapidez e convicção: os meus são lindos, disse ela. Dias depois, porém, ao retornar ao seu ninho e encontrá-lo vazio, logo desconfiou da engolidora de crias e partiu para tirar satisfações. Ao receber a péssima notícia, de que a águia havia almoçado, sim, os seus passarinhos, a ave de hábitos noturnos precisou lidar não só com a dor da perda, mas também com a surpreendente explicação: foram abocanhados porque eram horríveis e não bonitos como a mamãe havia explanado.
Assim como a coruja da fábula atribuída a Monteiro Lobato (1882-1948), os protagonistas de “Monstros”, musical que estreou nesta sexta-feira (06), no Teatro PetroRio das Artes, no Shopping da Gávea, são aquela espécie de pais que parecem sofrer do mal da cegueira seletiva em relação aos filhos, nos quais enxergam só aquilo que lhes convém. No palco, Claudio Lins e Soraya Ravenle interpretam dois adultos que se cruzam porque os filhos estudam no mesmo colégio. Ambos têm por natureza considerar os herdeiros especiais, muitas vezes até acima da média, o que pode ser compreensível e até causar identificação em qualquer espectador. Mas os próprios atores são os primeiros a admitir: a conduta dos dois é passível de crítica.
— Sim, dá para criticar. Eu mesma critico… Aliás, dá uma vontade de criticar eternamente (risos). Mas é uma questão bem difícil. A gente procura entender também — pondera Soraya, que conversou sobre o espetáculo com o RIO ENCENA, assim como Claudio Lins, que, da mesma forma que a parceria de cena, admitiu que criticaria os personagens, mas com moderações.
— Dá para criticar, mas a gente percebe traços de imaturidade nos personagens. Eles falam dos pais deles também. E aí é possível perceber como eles não resolveram algumas questões que tinham com os pais. E embora tentem evitar, essas questões se repetem com os filhos deles. É comum a gente reconhecer as falhas dos nossos pais, não querer repetir com nossos filhos, mas repeti-las. E a gente vê isso claramente na peça — explica Claudio, responsável ao lado do diretor Victor Garcia Peralta pela versão brasileira do texto e das músicas, que são do argentino Emiliano Dionisi.
Apesar do tom crítico que adotam em suas visões, os atores – que além dos pais, que estão na faixa dos 40, 50 anos, fazem também os papéis dos filhos, que têm 9 e 11 anos – ressaltam que a ideia do espetáculo não é dar lição de moral ou puxão de orelhas em possíveis pais e mães corujas presentes na plateia. O efeito esperado por eles é mesmo o da identificação.
— A gente retrata a realidade. E nos ensaios preliminares, vemos pessoas se identificando, até mesmo com os personagens dos filhos. Dizem “eu era assim quando criança”, “meu pai falava isso para mim”, “minha mãe me tratava desse jeito”… — lembra Claudio.
— A peça não tem a pretensão de puxar orelha porque são erros que todos nós cometemos. Eu vejo mais como um espelhamento entre o espetáculo e as pessoas. Uma amiga minha, que é mãe de uma criança pequena, me disse que se viu muito nos personagens, que faz muitas coisas que eles fazem, que projeta para o filho o que ela acha melhor… Acho que o grande mérito desse trabalho é operar como um grande espelho para as pessoas — compara Soraya.
Pais de filhos únicos – Soraya é mãe da também atriz Julia Bernat, e Claudio tem só pequeno Mariano, de 7 anos – os atores apontam quais características de seus personagens mais se identificam.
— Me identifico com algumas questões, mas com menos intensidade, porque eles operam a relação de um jeito muito radical. Eles não são sutis, já a gente faz coisas que a olho nu não se vê. A minha personagem, por exemplo, se preocupa demais com o olhar dos outros, e acho que todos somos assim. A menina é quieta demais, um pouco demais, mas em vez de tentar entender essa quietude, a mãe fala “não, de jeito nenhum, não há problema nenhum com essa maneira calada dela” — exemplifica Soraya.
— Muitas coisas que estou vivendo no espetáculo, vivo com meu filho em casa. Nossos monstros íntimos surgem no nosso dia-a-dia, a gente tenta evitar, mas tem dias que não dá. E eu me identifico também com o garoto da peça, com algumas percepções que ele tem do pai, e que eu costumava ter do meu — recorda Claudio, que é filho do cantor e compositor Ivan Lins com a atriz Lucinha Lins. Ele completa: — A gente brinca que se esses pais fossem psicoanalisados não haveria peça (risos). Eles resolveriam tudo com mais tranquilidade. O que procuro fazer em relação ao meu filho é resolver as coisas da maneira mais madura possível. Mas a gente perde a paciência mesmo em algumas horas, e acaba indo mais pela emoção do que pela razão. Mas o pai do espetáculo é muito mais emoção. Com isso, não me identifico.
Musical a dois
Anunciado pela produção como o primeiro musical argentino contemporâneo montado no Brasil, “Monstros” não segue algumas características típicas do gênero. A começar pelo elenco enxuto, com apenas dois atores, em vez de vários, com protagonistas e coro. Com vasta experiência em musicais, Soraya aponta a principal diferença deste trabalho atual para os demais.
— É um jogo de dois atores muito intenso, que não acaba diluído com um elenco grande. Estamos em cena o tempo todo, nos escutando — destaca a atriz, com discurso afinado ao de Claudio.
— Muda muito, porque com um elenco grande, como acontece na maioria dos musicais, você tem um suporte, um descanso, sai de cena. Já esse espetáculo é uma hora e meia de nós dois apenas em cena. E mesmo quando tem um monólogo do outro, a gente está vivo. Eu nunca tinha estado em cena só eu e outra pessoa. E esse foi um dos pontos que me atraíram, essa possibilidade de estar em cena com menos gente, o desafio de estar mais sozinho — reconhece Claudio, que se sentiu atraído por “Monstros” quando assistiu à premiada versão original em Buenos Aires.
A indicação foi do diretor Victor Garcia Peralta, que assistira à montagem um pouco antes. Empolgados, os dois tiveram a certeza de que precisavam trazer o espetáculo para cá. Outra convicção foi a de que deveriam ser o máximo possível fiéis à obra original, realizando apenas algumas pequenas adaptações quanto ao idioma e à regionalidade. A única intervenção mais significativa foi na execução das oito canções de Dionisi.
Em vez de uma banda de músicos, como na montagem do país vizinho, Claudio e Victor decidiram seguir um outro caminho que tivesse mais a ver com aquilo que estavam pensando para a peça. Foi aí que Soraya sugeriu o nome de Azullllllll (sim, seu nome artístico tem oito vezes a letra L), que assumiu a direção musical e introduziu uma proposta de música eletrônica. Ele, inclusive, está em cena com um set eletrônico.
— Um diferencial nosso é a direção musical do Azullllllll, que traz uma sonoridade eletrônica. Quando começamos a ler o texto, vimos que a direção musical original não servia para o que queríamos. Não temos nada a falar do original, que assistimos e nos apaixonamos, mas quando começamos a esmiuçar, sentimos que queríamos ir para um outro lugar de estética, de cenário… E o pop rock original não cabia nessa nossa proposta. A Soraya já tinha trabalhado com Azullllllll, sugeriu e ele fez um trabalho que caminhava para que queríamos — encerra Claudio.