Estreou na última segunda-feira, 30, no formato online, a quarta edição do Festival Segunda Black, dedicado à criticidade, formação e experimentos teatrais e performáticos de artistas negros. De âmbito nacional, o festival foi inaugurado com a masterclass sobre “Memória”, da professora referência nos estudos de performances negras Leda Maria Martins transmitida ao vivo pelo Facebook (assista aqui). Em um derramamento de conhecimento e griotagem, permeado por reflexões sobre os 150 anos de Benjamim de Oliveira – o primeiro palhaço negro no Brasil – e os 30 anos do Bando Teatro Olodum, Leda Martins tencionou o lugar da arte e do teatro apontando as microfissuras do racismo para dialogar com cânone a partir da agência negra. Importante a sua fala sobre a força estética como promotora de mudança a partir do espectro da negrura. Bonito de aprender!
Mais tarde, com o tema “Abrindo os caminhos” foram apresentadas três performances (assista aqui). Em “Não era meia-noite era quase meio-dia”, de Jade Zimbra e Castiel Vitorino, a experiência cênica trabalha as imprevisibilidades do corpo-voz. Interessante a confluência dos corpos formando um duplo reverberante da tessitura textual e a reivindicação da transgressão das bruxas, me fazendo lembrar da obra de Maryse Condé “Tituba, a feiticeira negra de Salém”.
Em “Mimo Bambu em o catador de risos”, do Grupo Caras Pintadas, o apelo político do riso – e suas arestas cortantes – costurou toda a performance, em que por meio da palhaçaria, questiona-se a falta de autocuidado de transeuntes em relação ao uso da máscara e aglomerações em meio a pandemia. A escolha do apito para expressar a comunicação não-oral agregou muito e despertou a memória da palhaçaria da minha infância.
Já “Alicerce”, de Hiago Ruan da Silva, discorreu sobre os caminhos abertos para Esú e as possibilidades de estradas, saudando a entidade das artes performáticas e patrona do Festival Segunda Black. Mais uma vez, o corpo é central e a incorporação da linguagem audiovisual trouxe dinâmica principalmente nas cenas externas. A água como elemento primordial da vida deu uma dimensão filosófica para pensar a comunicação de Esú. Também gostei da escolha por um figurino que quebrou com a perspectiva do preto e vermelho comum nas representações sobre a entidade.
Na segunda noite de festival, foi a vez de discutir a “poesia híbrida na cena” como tema suleador das potentes performances. Diferentemente do primeiro dia, o foco torna-se a construção do discurso e da subjetividade negra (assista aqui). “Pretofagia – o plot”, de Yuri Cruz, questiona o lugar do corpo negro e sua resistência. Acompanho o projeto desde a sua ocupação no Centro Cultural Hélio Oiticica e assisti-lo no formato de vídeo deu mais uma camada ao sensível trabalho. Com um texto poderoso e cortante, mergulhamos nas experimentações do artista que conta a história dos corpos subjetivos que carregamos em nós. O uso da máscara como metáfora das estratégias de sobrevivência, além de dialogar com o intelectual e psiquiatra Franz Fanon, abre espaço para pensar a estética das máscaras africanas.
Em “O preto bonito está cagando para você, Madame!” de Médrick Varioux, expõe-se a relação da negritude com a construção ocidental. As reflexões sobre o devir negro suscitadas e os incômodos gerados ampliaram as camadas do encenado. Se quer desestabilizar os lugares estanques e universalizantes destinados aos corpos negros, para em movimento, chegar em uma narrativa pluriversal. O jogo de câmera e edição também fizeram a diferença no resultado final.
Carolina Aza fechou a noite com “Sobre pesos e balanças”. O texto alternante entre o lírico e dramático sobre o entre-lugar do ser negro na dinâmica da necropolítica. Propondo-se a um despir-se do olhar ocidental, evidencia as fraturas existenciais dessa experiência num processo curativo pela palavra. O trabalho de figurino e arte complementaram o recorte estético.
A programação continua até 08 de dezembro, diariamente a partir das 19:30. Nesta quarta, o tema é “Mulher negra”, com as performances “Amor Preta”, de Adrielle Vieira; “Super Maria”, de Som de Preta; e “Rosas Negras”, de Fabíola Nansurê. No total, serão 26 performances de artistas e coletivos negros de diferentes partes do país. Após a exibição dos experimentos teatrais, eu e o ator e crítico teatral Guilherme Riniz fazemos a interface crítica sobre as produções.
No dia 07, às 15h, acontece uma roda de conversa sobre as perspectivas futuras para o fomento e difusão de artes negras da cena. Além disso, o festival está promovendo o intercâmbio formativo a espelho do movimento ao movimento criado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), visando inspirar e fortalecer a criação de novas narrativas a nível nacional e internacional.
Você pode conferir o festival tanto pelo YouTube do Oi Futuro, quanto pela página do Facebook do Festival Segunda Black.
Dúvidas, críticas ou sugestões, envie para aza.njeri@rioencena.com.