O ano de 2020 foi especialmente difícil para o cenário teatral. Com casas fechadas e espetáculos cancelados, a classe artística se viu precarizada e teve que se reinventar para se adaptar aos novos tempos. Felizmente, houve muita mobilização de organizações como a APTR (Associação de Produtores de Teatro do Rio) com cestas básicas e ajudas emergenciais. O setor público com a Lei Aldir Blanc também se mobilizou, entretanto está com sérios problemas de execução e pagamento. Parceiros culturais fizeram editais emergenciais, possibilitando algum tipo de sobrevivência aos artistas, mas ainda insuficientes para dar conta de toda a classe de fazedores de artes que incluem do cenografista e luz ao figurino e maquiagem.
Apesar dos descarrilamentos pandêmicos, neste ano consegui ver bons espetáculos ao vivo, construí, junto ao ator Reinaldo Jr., a performance “Levanta século XXI” sobre Marcus Garvey e participei como interface crítica da quarta edição do Festival Segunda Black de Teatro e Performance Negras, este pela primeira vez online. No que tange o ambiente virtual, o ano trouxe o desafio de transformar o fazer teatral em uma realidade dialogante com o audiovisual. Acredito que nesse sentido, abismos de raça, gênero e classe se fizeram presentes, pois quantos artistas negres e periféricos tiveram condições, equipamentos e Internet para filmar, editar e subir para as redes seus materiais?
Nós poderíamos, portanto, dividir o ano teatral de 2020 em duas partes: pré pandemia e pós quarentena. Até março havia muitas obras no circuito e outras prestes a estrear. Assim consegui assistir algumas, dentre elas a excelente “Negras palavras: Solano Trindade”, dirigida por Orlando Caldeira e Renato Farias. Com um lindo trabalho de corpo, passeamos pelas poesias e biografia do poeta afrobrasileiro. Outra obra impactante foi “Yabás: mulheres negras”, dirigida por Luiza Loroza e Rodrigo França, em que também tive o prazer de trabalhar como interface crítica. Trazendo os dilemas e subjetividades de mulheres negras a partir dos arquétipos das Yabás do candomblé, o espetáculo teve apenas três apresentações antes de ser suspenso pelo quarentena.
No circuito online após isolamento social, começaram a aparecer espetáculos apressados que aos poucos foram entendendo as ferramentas utilizadas para a transmissão, aprimorando a experiência do espectador. Na minha opinião, nada substituirá o teatro ao vivo e em presença, contudo poder assistir às gravações feitas no palco como em “Pele negra, máscaras brancas” da Cia de Teatro da UFBA trouxe um acalanto para a saudade que sentia.
Espetáculos online que se reorganizaram para cenários residenciais nem sempre foram bem sucedidos. As falhas técnicas e de conexão, apesar de contar com a nossa compreensão, algumas vezes impossibilitaram a boa execução da obra.
Dois espetáculos que pude ver ao vivo e online foram “Tempestuosa Depressagem”, da Flávia Souza, e “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto”, de Hilton Cobra. Ambas mais contidas e limitadas, todavia sem perder a boa qualidade.
Quero fechar essa retrospectiva com a melhor peça que assisti neste ano: a premiada “Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã”, do dramaturgo e ator Jhonny Salaberg. Entrei em contato com o texto dramatúrgico antes de assistir à montagem e, impossibilitada de estar ao vivo, fui à apresentação feita para o YouTube, do Sesc São Paulo. Arrebatadora. E na realidade genocida que vivemos, pensar os buraquinhos que atravessam corpos negros sempre se faz urgente.
Mesmo não tendo sido fácil, o teatro se moldou e articulou às formulações deste tempo. Potente ferramenta para questionar a realidade, o artivismo é necessário mais do que nunca. Para 2021, eu desejo vida longa às artes! Que possamos sobreviver sem negociarmos a nossa humanidade.
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