O meu primeiro contato com a obra “Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã” do, dramaturgo e ator Jhonny Salaberg, foi com o livro “Dramaturgia Negra”, organizado por Eugênio Lima e Julio Ludemir, que reúne textos importantes da cena teatral negra contemporânea. Lembro-me que chorei como “quem chora em cima de uma foto, desaguando os órgãos para poder hidratar a dor”, tamanho arrebatamento lírico da narrativa que me suspendeu para dentro da sensação do esburacar da bala que atravessa o corpo de jovens negros.
A estética escolhida para tratar de um tema tão delicado como o genocídio do povo negro é o realismo fantástico, que empresta leveza onírica necessária para que possamos, como pipas, flanar de mãos dadas com o jovem que passeia pela América Latina enquanto corre das balas disparadas pela polícia.
A partir deste primeiro contato, voltei ao texto muitas vezes, principalmente quando ouço notícias de novos buraquinhos dilacerando corpos negros por aí. De forma que nesta quarentena o Núcleo de Estudos Geracionais sobre Raça, Arte, Religião e História/LHER/UFRJ, que eu coordeno ao lado da atriz, produtora e pesquisadora Sol
Miranda, com a participação do Grupo Emú, começou a fazer estudos sobre a dramaturgia negra e o primeiro corpus de análise é justamente “Buraquinhos”.
Revisitei, agora como pesquisadora, as metáforas dissonantes que deslocam tamanha precisão imagética, e, com “sebo nas asas”, discutimos nos encontros do Núcleo sobre a arte como possibilidade de “estancar o real e capturar a utopia”.
Eu aguardava ansiosamente por uma possibilidade de ver o espetáculo e já fazia planos pro pós-pandemia de ir até SP para assistir se fosse o caso, mas eis que o Sesc São Paulo, com o projeto #emcasacomsesc (assista aqui), nos presenteia com a apresentação da montagem adaptada para a realidade de isolamento. Apesar de sentir falta do espaço aglomerado do teatro, a experiência não limitou em nada o mergulho cosmosensível, pois o ator soube construir seu gesto cênico
diante da câmera de forma plena.
“Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã”, escrito em 2016 e estreado em 2018, mereceu todos os prêmios recebidos, e se tiverem premiações para espetáculos na quarentena, ele também deveria estar entre os laureados. É uma obra fôlego apesar da dureza e seriedade de seu tema. É tipo um colo de vó, daquelas que dão uma bronca forte na gente, ao mesmo tempo em que nos aperta contra o seu peito pra acalentar cada ferida.
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