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Clarice ainda é clara-e-cis? Um olhar trans sobre o espetáculo ‘Na Sala com Clarice’

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Tempo estimado de leitura: 3 minutos
Dodi Leal é performer, crítica e curadora Foto: Arquivo pessoal

Peço licença à querida Profa. Aza Njeri, articuladora desta coluna no Rio Encena, que muito gentilmente cedeu seu perfil no Instagram (@azanjeri_) e este espaço de crítica teatral para a Ocupação Travesti, que acontece de 25/1 a 30/1 com uma programação de indicações, postagens e lives em celebração ao Mês da Visibilidade Trans. Agradeço demais à Aza pela confiança e a saúdo pelo belíssimo trabalho que ela vem realizando como educadora, artista e como crítica teatral.

Com concepção e atuação de Odilon Esteves, “Na sala com Clarice” está em temporada online no quadro da programação do #CCBBemCasa, patrocinado pelo Banco do Brasil. O centenário de nascimento de Clarice Lispector é o mote. O formato adotado como estratégia de interação com o grande público (na apresentação do dia 24 de janeiro, um domingo, registrava uma média de mais de 370 pessoas estáveis) é o cardapialismo, no qual o autor associa a fruição teatral com a nutrição.

 

A Entrada teve como primeiro conto escolhido pelo público (ostras e drink) “Ele me bebeu”, publicado pela primeira vez na obra em “A Via Crucis do Corpo” em 1974. Nos pratos principais, é possível escolher o conto pelos títulos e uma breve sinopse feita pelo intérprete: “O grande passeio”, “Perdoando Deus”, “Restos do Carnaval” e “Uma amizade sincera”. Também publicado com o título “A vingança e a reconciliação penosa”, um conto escolhido foi “Perdoando Deus”. Depois segue-se o outro prato cênico principal mais votado: “O grande passeio”. A sobremesa é escolhida tendo como mote dois quadros, o conto correspondente ao mais votado “Encarnação involuntária”. Emoção há. Texto e cena para quem tem saudades de uma peça teatral presencial. Ah, não poderia faltar o cafezinho no final, o expediente da peça.

Sim, fiz questão de enumerar os primeiros pratos/contos escolhidos para que se registre o que foi servido. E, certamente, apreciado pelo público. Clarice ganhou uma atemporalidade no tempo da literatura brasileira. Mas qual literatura? A mesma que foi tecida por e para pessoas brancas e cisgêneras – condição em que a identidade de gênero da pessoa corresponde ao gênero que lhe foi atribuído socialmente no nascimento, o que é oposto ao transgênero.

Vemos em “Na sala com Clarice” que Clarice Lispector ainda é clara-e-cis pois ainda é sintagma da perspectiva cisgênera e branca de mundo. O formato teatral do cardapialismo também precisa ser questionado já que, paradigmaticamente, neste país, no consumo de comida (mas não apenas) sublinhamos que os corpos que servem os pratos não são brancos. Da mesma maneira, a transgeneridade tem sido apropriada pela cisgeneridade em um humor humilhante, para fazer a condição trans servir ao entretenimento cis, operação que a atriz travesti Renata Carvalho tem chamado de “transfobia recreativa”.

Odilon Esteves apresenta os contos de Clarice direto da sala de sua casa Foto: Fernando Badharó/Divulgação

O formato teatral do cardapialismo serve a quem? Quem acessa a Internet durante a pandemia do coronavírus e, diante de tantas mortes, tem tranquilidade para assistir a um espetáculo que menciona itens de cozinha que não coincidem com a maioria das refeições da população do país? As contradições ficam. O Brasil de 2021 segue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo: segue sendo o país que mais consome pornografia trans do mundo.

Em geral, o efeito estético de uma obra, seja no âmbito da literatura ou da interpretação teatral, é medido pela branquitude e pela cisgeneridade em termos da capacidade técnica da atuação ou da genialidade da escrita. Odilon e Clarice têm algo em comum para além da cisgeneridade branca: expressividade e criatividade expandidas. Mas os recrudescimentos históricos têm escolhido a genialidade artística em função das hegemonias de raça e de gênero. Basta que constatemos, no século XX ou no XXI brasileiros, o volume de publicações literárias e a concentração da maior parte dos financiamentos de economia da cultura entre pessoas brancas e cisgêneras.

Nem todo mundo percebeu, mas a reversão transnegra de Clarice já tem sido feita por Linn da Quebrada já há alguns anos na letra da música Submissa do 7º Dia, cujos versos coincidem com as primeiras frases do livro A paixão segundo G.H. (que não comparece na sala com Clarice pois é romance): “Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender…” e Linn segue: “o que é que tem em mim que tanto incomoda você?”. Para que Clarice não tenha mais um efeito de recepção clara-e-cis, é preciso ouvir as espectadoras das travas pretas, as Linnspectors.

Dúvidas, críticas ou sugestões, envie para aza.njeri@rioencena.com.
*AzaNjeri cedeu seu espaço para a performer, crítica e curadora na área de artes cênicas Dodi Leal (@dodileal), em comemoração ao Mês da Visibilidade Trans.

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