Quando um ator consegue interpretar de forma muito verossímil um personagem real, que existiu de fato, é comum ouvirmos que ele “entrou no papel de corpo e alma”. A atuação de Beth Goulart no monólogo “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, entretanto, se sobrepõe a esse clichê. No espetáculo, em cartaz no Teatro Sesi, no Centro, de quinta a sábado às 19h30, a atriz não apenas assume o papel da escritora falecida em 1977, aos 57 anos, como também cuida de todos os pormenores da direção e da dramaturgia. Isso sem falar na vasta exposição de textos e fotos de Clarice, da qual Beth é curadora, que recebe o público no mesmo local. Ou seja, o trabalho é fruto de um mergulho profundo na vida e obra da ucraniana naturalizada brasileira que vai muito além de uma homenagem de fã para ídolo.
Aos 54 anos, Beth conversou com o RIO ENCENA e falou sobre sua admiração por Clarice, seja como escritora ou mulher. De acordo com ela, as próprias obras da autora, que deixam transparecer muito de sua personalidade, e as pesquisas realizadas fizeram-na encontrar traços pessoais em comum entre admirada e admiradora. Tamanha afinidade (ou relação de cumplicidade, como a própria atriz define) só não cresceu ainda mais porque elas não tiveram a chance de se conhecer: a atriz tinha apenas 16 anos quando Clarice faleceu. Isso, porém, não impediu que elas tivessem um “encontro” inusitado:
– Foi no Festival de Teatro de Curitiba, em 2010. Foi uma sessão com o teatro lotado, e eu pude sentir a presença de Clarice naquela noite – garante a atriz, que já atuou em cerca de 20 peças em mais de 40 anos de carreira.
Essa proximidade espiritual aconteceu em uma das centenas de apresentações (vistas por mais de 800 espectadores) que Beth fez em mais de 245 cidades brasileiras desde que o espetáculo estreou em 2009. Uma turnê internacional, mais precisamente em Portugal, está nos planos, porém, não para breve. Mas enquanto essa viagem não chega, Beth segue fazendo de sua admiração por Clarice uma de suas ferramentas de trabalho.
Fale um pouco dessa sua “relação” com a Clarice Lispector. É mais do que uma relação entre fã e ídolo?
Na verdade, é uma relação de cumplicidade, que se iniciou na minha adolescência com a sensação de que ela me entendia mais do que qualquer um (risos). E acho que não sou a única que tenho essa relação com ela. A Clarice consegue essa relação de intimidade porque ela coloca seu lado interior nas coisas que escreve. As análises das relações humanas, as sutilezas de coisas que correm no nosso interior. Por isso existe essa sensação de cumplicidade.
Seu caso é diferente de quando um ator interpreta um personagem que existiu de verdade, mas com a condição de que foi um autor que escreveu aquele texto para ele, e com a direção de uma outra pessoa. Nesse monólogo, você atua e assina a dramaturgia e a direção. E ainda tem a exposição! É totalmente a sua concepção da Clarice, não é?
Sim. Fiz um trabalho de pesquisa de dois anos, além de uma vida inteira como admiradora. Quando você tem uma identificação de uma vida, há uma dedicação diferente. Nesse trabalho, existe o desenvolvimento de uma linguagem que é a que eu já fazia no teatro mais essa admiração pela Clarice. Somei as duas coisas. Por isso ficou tão autoral. Eu me revelo ali também . As pessoas na plateia acabam conhecendo mais um pouco da Beth, as minhas coisas…
Você chegou a conhecê-la pessoalmente? Quando ela faleceu, você tinha apenas 16 anos.
Infelizmente, não. Apenas acompanhava o trabalho dela. Ela faleceu em 1977, eu nasci em 1961, então nossas datas cronológicas não combinaram (risos). Mas quando você lê a obra da Clarice, você acaba conhecendo mais sobre ela. Ela se coloca como autora, contando aquela história, e se revela muito ali.
Mas lembra da notícia da morte dela? Como foi sua reação?
Lembro que fiquei mexida, como se perdesse parte de mim, uma pessoa querida da família. Mas fiquei com a certeza de que ela seguiria viva na sua obra. Porque quem deixa uma obra, não vai embora à toa do mundo. Essa pessoa deixa uma marca na história. E ela deixou uma marca na literatura brasileira. Não só na brasileira, mas mundial também. Todo mundo conhece a Clarice.
E por tudo o que você já conhece sobre a Clarice. Há características em comum entre as personalidades de vocês duas?
Ela foi à frente do seu tempo. Se casou com um diplomata, teve dois filhos, mas depois teve a necessidade de se dedicar mais à sua arte e se separou. Cuidou dos filhos numa época em que mulher separada não era bem aceita pela sociedade. Ela colocava a máquina de escrever no colo para poder ficar perto dos filhos. Foi inovadora no sentido de assumir a posição de mulher batalhadora. E eu comecei a trabalhar muito cedo, aos 13 anos, sempre fui muito independente. E toda mulher se identifica um pouco com essa força libertária da Clarice, da mulher moderna. E eu também me relaciono com o mundo através da minha arte, assim como ela.
Você já se apresentou em mais de 245 cidades brasileiras em seis anos. Tem alguma apresentação que tenha te marcado mais? Por quê?
Muitas foram especialíssimas, mas eu gostaria de citar uma que me marcou. Foi no Festival de Teatro de Curitiba, em 2010. Foram sessões com o teatro lotado, e eu senti a presença de Clarice naquela noite. Foi especial, porque naquele dia fiquei com a sensação de poder compartilhar com a Clarice a obra dela.
E pretende levar o espetáculo para fora do país?
Nós tivemos um namoro com Portugal, que ainda não se concretizou ,mas espero que sim. Não sei se ainda para esse ano, porque todos sabem das dificuldades do Brasil. E levar um espetáculo para fora do país agora é complicado. Ainda tem as Olimpíadas, as dificuldades financeiras… E eu também começo a gravar uma novela em março. Então acho que vai ficar para 2017 mesmo.
Pode contar um pouco mais sobre essa novela?
Chama-se “A Terra Prometida”, da Record, e é uma continuação de “Os 10 Mandamentos”, do Renato Modesto. Minha personagem é a Léa, uma mulher batalhadora que, digamos, é a mãe da vilã e da mocinha (risos). Começamos a gravar em março, então acredito que a estreia fique para maio ou junho.