Não é uma peça de “terror”, mas pode “aterrorizar”. No mínimo, incomodar muito, tirar qualquer um de sua zona de conforto e revelar a monstruosidade que envolve as relações entre pais e filhos, por mais que eles não se deem conta disso. Nem nós. É preciso estar preparado para assistir a este primeiro musical argentino contemporâneo montado no Brasil, “MONSTROS”, em cartaz no Teatro PetroRio das Artes.
Este não é um musical como os que, via de regra, estamos acostumados a ver, sobre os quais temos uma ideia formada, estereotipada, na cabeça, todos com muitos elementos em comum. Aqui, nada de elenco numeroso; apenas um ator/cantor e uma cantriz. Sem muitos músicos; apenas – mas esse “apenas” vale por uma grande orquestra – um musicista, que também fica em cena, AZULLLLLLLL (Sim, esse é o nome dele!), munido de uma parafernália informático-eletrônica, utilizada no acompanhamento das canções e, também, na trilha sonora e nos sons incidentais, durante toda a peça, praticamente, com raros momentos em que só as vozes do ator e da atriz são ouvidas. Não há cenários deslumbrantes e em profusão, peças gigantescas, que entram no palco e dele saem, menos, ainda, escadarias e cortinas aos borbotões; apenas uma enorme peça, sobre a qual falarei posteriormente, no centro do palco, que gira, em torno de um eixo, sobre uma plataforma de madeira. Um único figurino para cada personagem. Ausência de coreografia.
Mas que musical é esse, afinal de contas? Isso rende um musical? Diríamos que é uma nova proposta do gênero, um novo conceito, contemporâneo e, coincidentemente, em função da grande dificuldade por que passa o TEATRO BRASILEIRO, para se conseguir erguer uma produção, bem atende a essa nova realidade.
O espetáculo chega, ao Brasil, vitorioso, a julgar pelo fato de ter sido “Selecionado, em 2015, como Melhor Projeto de TEATRO MUSICAL, na Bienal de Arte Jovem de Buenos Aires (…). Desde que estreou, no mesmo ano de 2015, até suas últimas apresentações, em 2018, o espetáculo acumulou casas lotadas, excelentes críticas e cerca de 17 prêmios do teatro argentino, além de montagens no Uruguai e na República Dominicana. Na Argentina, venceu o 1º Prêmio Trinidad Guevara (Melhor Trilha Original), o 1º Prêmio Argentores (Melhor Música), ganhou sete Prêmios Hugo (Hugo de Oro – Espetáculo do Ano, Melhor Musical, Melhor Direção, Melhor Atriz de Musical, Melhor Ator de Musical, Melhor Libreto de Musical Argentino e Melhores Letras de Musical Argentino) e quatro Prêmios ACE (Melhor Musical, Melhor Direção de Musical, Melhor Ator de Musical e Melhor Música Original). No Uruguai, venceu quatro Prêmios Florencio Sanchez (Melhor Musical, Melhor Atriz de Musical, Melhor Ator de Musical e Melhor Música Original).” (Trecho extraído do “release”, enviado por RACHEL ALMEIDA – RACCA COMUNICAÇÃO.) Acho que, no Brasil, tem tudo para continuar angariando indicações e premiações.
SERVIÇO
O premiado musical “MONSTROS” conta a história de CLÁUDIO (CLAUDIO LINS) e SANDRA (SORAYA RAVENLE), adultos, que se cruzam, casualmente, porque seus filhos estudam no mesmo colégio.
SANDRA tem tanto orgulho de sua filha, Luiza, como CLAUDIO tem de seu filho, Francisco.
Eles têm certeza de que seus respectivos filhos são especiais. Talvez, acima da média.
Qualquer problema, na escola, ou questões de relacionamento com outras crianças são encarados de maneira normal.
Nada que o amor sufocante e cego desses pais possa ver como desvios de conduta.
Mas, aos poucos, como “monstros”, saindo do armário, as verdadeiras faces dessas famílias vão se revelando, com suas relações caóticas e cotidianas, até um desfecho tão surpreendente quanto inevitável.
Na encenação de PERALTA, adaptada da original, o casal de atores interpreta quatro personagens, os pais, na maioria do tempo, e os filhos, em rápidas passagens, revelando a crueldade presente nas relações cotidianas, fruto do excesso de amor, de uma superproteção e valorização dos seus rebentos; pura idealização, que não condiz com a realidade.
É certo que os pais, invariavelmente, desejam o melhor para seus filhos e, via de regra, não poupam esforços nem sacrifícios para vê-los felizes e realizados, mesmo que isso exija um custo muito alto. Não financeiro, mas subjetivo, interior, de alienação e, até mesmo, autoanulação. E isso, na maioria das vezes, é via de mão dupla. Quando se ama em excesso, a visão se torna turva, não vemos o que está, nítido ou disfarçado, à nossa frente, e só focamos nas qualidades do outro, mesmo que não sejam dignas de tanta admiração. O que ocorre é que não dá para se enxergar um mundo cor de rosa, e tentar viver nele, que não existe, na prática, 24 horas por dia, todos os dias. Vez por outra, ou muitas vezes, as coisas fogem ao nosso controle e interrompem os construídos planos, sob as melhores expectativas, e o rio não desemboca num mar de águas límpidas, mas num mangue, lamacento e de odor desagradável, embora, nele, até, possa haver vidas. E elas as há.
Quando não correspondidos os nossos sonhos e anseios, cria-se uma situação de desconforto e frustração, a qual nos leva, quase sempre, a não saber lidar com o inesperado, o indesejável. Quando se enxerga, então, a realidade e há uma resistência em aceitá-la, isso não pode dar boa coisa.
Se, no início desta apreciação crítica, chamei a atenção dos que me leem para o fato de que é preciso, mais ou menos, “ter estômago forte”, para resistir aos 100 minutos de espetáculo, é porque a peça faz o público refletir sobre as crueldades ocultas nas relações familiares e cotidianas, que vão muito além do que julgamos existir.
Segundo o grande diretor, VICTOR GARCIA PERALTA, “O musical põe, em cena, temas com os quais eu tenho gostado de trabalhar: as relações familiares, educação, infância e, principalmente, a dificuldade que temos de nos colocar do lugar do outro, de exercer a empatia”. Isso, de verdade, está presente na assinatura de seus mais recentes trabalhos de direção, todos de excelente qualidade. E temos, como exemplo, dentro da fala do diretor, “A Sala Laranja: No Jardim de infância”, da dramaturga argentina Victoria Hladilo. O mais difícil de tudo, para todo ser humano, na verdade, é se livrar do “farinha pouca, meu pirão primeiro” e conseguir se colocar no lugar do outro, enxergar-se no próximo, praticar a tão necessária empatia, para que a vida harmoniosa seja mais possível, entre os ditos “humanos”. “Em ‘MONSTROS’, temos um pai e uma mãe que não conseguem olhar, de verdade, para os seus filhos e que têm dificuldade de lidar com as expectativas frustradas.”. Assim, complementa o diretor, que assistiu à primeira montagem do texto, em Buenos Aires, há três anos, com o próprio autor do texto atuando.
Paulatinamente, os dois personagens adultos vão se tornando, cada vez mais, antagônicos e belicosos, girando em torno de um mesmo desejo: provar, um ao outro, a “supremacia” do seu herdeiro, como se aquele reconhecimento, de ambos, não fosse ampliado, despudorada e exageradamente, com um objetivo único, qual seja o de humilhar o outro. E, para isso, cada um luta, com todas as armas disponíveis, para atingir seu objetivo. Até o momento em que… Sem “spoiler”!!!
O texto é excelente e, ainda que eu não tenha tido acesso ao original, considero ótima a tradução/adaptação, de PERALTA e LINS. Penso ter sido um trabalho muito intenso, para que fossem escolhidas, a dedo, as palavras, a sintaxe, as letras das canções, as quais, como sói, num musical, ajudam a contar a história, fazem parte da rica dramaturgia.
Se eu não dissesse uma palavra sobre CLAUDIO e SORAYA, acerca de suas interpretações, talvez nem fizesse falta, porque, por mais que eu me perdesse em linhas e linhas de elogios ao trabalho da dupla, ainda seria insuficiente, para traduzir toda a minha admiração pelos dois em cena, tanto atuando como cantando. Os personagens vão num crescendo, do ponto de vista do extravasamento de suas emoções e isso é meticulosamente cuidado pelos dois, e visível a olho nu. Ambos dialogam no mesmo padrão de qualidade, na mesma intensidade, no mesmo talento, já tão conhecido por nós, de tantos espetáculos anteriores em que a dupla brilhou. São fortes candidatos a indicações e a prêmios, no meu modesto olhar crítico. E, também, como espectador.
CLAUDIO LINS, ator, cantor e compositor, atuou em grandes musicais como “Ópera do Malandro” (2003/2006), “Gota d’Água” (2009), “Milton Nascimento – Nada Será Como Antes” (2012/2013), “Elis, a Musical” (2013/2015), “O Beijo no Asfalto – o Musical” (2015/2016) – obra-prima – e “O musical da Bossa Nova” (2017/2018), entre outros.
SORAYA RAVENLE é uma atriz e cantora, com mais de três dezenas de musicais no currículo, como “Theatro Musical Brazileiro II! (1994); “Dolores” (1999), no qual interpretava a cantora Dolores Duran; “South American Way – a Vida de Carmem Miranda” (2001); “Suburbano Coração” (2002); “Ópera do Malandro” (2003/2006); “Sassaricando – e o Rio Inventou a Marchinha” (2007/2008), “Era no Tempo do Rei (2010); “Um Violinista no Telhado” (2011); “O Pequeno Zacharias (2014); e “Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos” (2014/2015), entre outros.
PERALTA soube, duplamente, tirar partido do incomensurável talento dos atores e fez com que ambos interpretassem com muita naturalidade e deixassem bem à mostra a psique de seus personagens, o crescimento da rivalidade entre ambos, permitindo que cada um tenha seus momentos de protagonismo, reconhecido, em cena aberta, pelo público. A direção, ao optar por um grande espaço cênico livre, ocupou-o com boas marcações e conseguiu algo bem difícil: num, ainda que, musical, com dois atores em cena e 90 minutos de duração, manter um dinamismo que prende a atenção do espectador, da primeira à última cena. Mérito da direção e dos atores. Não pode ser deixado de lado o fato de os pais não se desgrudarem do celular, um péssimo hábito de hoje, que mais afasta as pessoas do que as aproxima.
VICTOR GARCIA PERALTA é um grande diretor de atores, trabalhando no Brasil, onde está radicado há muitos anos, e na Argentina, seu país natal. Sua direção para “Tebas Land” (2017/20190, espetáculo que conquistou, merecidamente, muitos prêmios, é impecável, como é esta, e ficará na memória afetiva de quem ama o bom TEATRO.
Na montagem argentina, deste musical, original, havia uma banda, para acompanhar os artistas, entretanto achei genial a ideia de manter, em cena, um musicista eclético e talentoso, como AZULLLLLLLL, que também assina a direção musical do espetáculo, num “set eletrônico”, dominando os seus computadores e “fabricando” sons incríveis, os quais servem de base, para o acompanhamento das oito canções interpretadas pelos atores, como também pontuam todo o espetáculo. São sons que se integram ao universo da peça, numa simbiose sem a qual não posso imaginar o espetáculo, sem aquele formato. Gostaria de ter conversado com AZULLLLLLLL, que também é ator, para saber detalhes de sua produção artística, de como ele construiu aquele trabalho de arranjos. Chegamos a marcar uma conversa por telefone, a qual, infelizmente, por incompatibilidade de horários, não chegou a ser concretizada. Sei, contudo, que o que se ouve, em cena, é fruto de um profundo trabalho de pesquisa, que o artista vem desenvolvendo faz um bom tempo. Eis o que ele afirma, sobre seu trabalho nesta peça: “Uma sonoridade que aborda do imaginário infantil ao terror, para criar uma espécie de realidade onírica e cruel. Há, também, nos arranjos, a noção ancestral da relação que temos com nossos pais e nossas paternidades e, por isso, um aspecto sensorial e emocional nas canções. Evoco elementos musicais da nossa ancestralidade brasileira e afro-brasileira e recorro, também, a estéticas eletrônicas, como a das séries “Stranger Things” e “Dark”, buscando a contemporaneidade necessária, para dialogar com a diversidade cultural que o povo brasileiro carrega e consome. (…) Cada música adiciona uma camada ao entendimento da peça, fortalecendo a trama e ajudando a conduzir a energia do espetáculo.”.
Não gostaria de dar detalhes sobre a cenografia, de FERNANDO RUBIO, mas, se não o fizesse, furtar-me ia a oportunidade de dizer quão interessante ela é e como tem tudo a ver com o texto. A tal “peça”, à qual me referi, no início desta crítica, sem ter dado maiores detalhes sobre ela, é uma enorme prensa industrial, que fica montada sobre um praticável de madeira, baixo, bem no centro do palco, e que gira em torno de um eixo, movimentos feitos, alternadamente, pelos dois atores, à medida que o grau de tensão vai aumentando. É como se um tentasse espremer o outro, aniquilá-lo, imprensar e prensar, que são verbos parecidos, porém mantêm alguma sutil distância, nos seus significados.
CLAUDIO TOVAR caprichou nos dois figurinos, discretos, sóbrios, elegantes de um corte perfeito. Um detalhe interessante é que esses figurinos parecem ter sido criados para esconder, ou dissimular, o aspecto feio interior dos personagens. Contribuem para uma espécie de contraste entre o físico e o não-físico.
MANECO QUINDERÉ criou um desenho de luz que funciona muito bem, com poucos momentos de luz intensa e variando, nos claros-escuros, escolhendo os momentos certos, as cenas propícias a exercitar a transição do claro para o escuro, com o devido destaque para isso, numa combinação perfeita entre sombras e luzes.
Um voto de louvor vai para a dupla SÉRGIO SABOYA e SÍVIO BATISTELA, à frente da direção de produção.
Não seria exagero dizer que “MONSTROS” é um dos melhores espetáculos da atual temporada carioca, o que o credencia a que eu o recomende com grande empenho e já esteja me programando para revê-lo.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI!!!
RESISTAMOS!!!
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