A educadora e pesquisadora Azoilda Loretto da Trindade ao pensar sobre os valores civilizatórios de herança africana que constroem o patrimônio cultural brasileiro, vai dizer que os afro-brasileiros herdaram a partir da memória, oralidade, corporeidade e tradição, valores humanos africanos ressignificados na realidade sócio-histórica brasileira.
Segundo a intelectual, estes valores seriam o conjunto de fundamentos morais, éticos, estéticos e comportamentais que orientam as produções materiais e imateriais dos afro-brasileiros e dividem-se em circularidade (movimento de roda), corporeidade (experiência do corpo), musicalidade, cooperatividade/comunitarismo (aquilombamento), memória, ludicidade, oralidade, ancestralidade/espiritualidade e energia vital, entendida como a energia que há em tudo que é vivo e existe nos reinos animal, mineral, vegetal e microbiológico. E eu acredito que é a energia que permite que a população negra fique de pé diante das variadas tentativas de genocídio que sofre.
Nesta quarentena, tenho participado de variadas discussões sobre o Teatro Negro e o Teatro Brasileiro e tenho visto pouca atenção a estes valores civilizatórios que nos fala Azoilda. Então, quero aproveitar a coluna de hoje para refletir o que, afinal, seria o Teatro Negro?
Muitos pensadores da área se debruçam sobre esta questão. Gosto do olhar que a intelectual Leda Maria Martins, referência na área, lança sobre o tema. Para ela, a expressão identifica peças que têm o negro como macro signo cênico. Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro em 1944, diz que essa vertente do Teatro Brasileiro é aquela cuja centralidade exprime os dramas do existir negro.
E o professor e pesquisador Marcos Antônio Alexandre resume: “Tratam-se de textos dramáticos e/ou espetaculares em que os negros, a sua cultura e a sua visão ideológica do (e para o) mundo aparecem como temática central e agentes”. Para mim, Teatro Negro além de representar os dramas existenciais dos negros no macro signo cênico expressando sua visão do (e para) o mundo, como nos falam os teóricos citados, o faz por meio de uma construção e execução que preza no seu próprio existir os valores civilizatórios afro-brasileiros.
O Teatro Negro no Brasil, portanto, agrega os valores de corporeidade, musicalidade, cooperativismo, memória, ludicidade e oralidade no seu próprio fazer, sendo o espetáculo em si, a força vital nutridora da nossa humanidade. No teatro, a energia que sai do instante da cena e de seu artista para o público é circular, já que este devolve também os afetos da experiência da captura memorialística daquele instante com aplausos, lágrimas e risos. Uma beleza pura!
Acredito que o desafio que se põe para todas as gerações negras fazedoras de teatro é o de inovar sem perder as referências. Dialogar com os demais valores civilizatórios que fundam nossa sociedade sem perder a bússola do Sul e, alimentando-se na estética africana, afro-diaspórica e afro-brasileira, encontrar a matéria fruitiva da arte.
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