Parece-me que, em TEATRO, a fórmula para se chegar ao acerto é a mesma de sempre, e muito simples, embora, paradoxalmente, difícil de ser ajustada; que o caminho para se atingir o sucesso não apresenta muitas variações. Bom texto + boa direção + bom elenco + bons elementos técnicos = SUCESSO. É logico que, a isso, devem ser somados esforço e dedicação. Hoje em dia, no Brasil, muita coragem e ousadia também se fazem necessários, sendo que estas, sozinhas, não são garantidoras de sucesso. Quem for ao Teatro SESC Ginástico, até o dia 1º de dezembro de 2019, vai encontrar essa fórmula no palco, concentrada na peça “OS IMPOSTORES”, com texto de GUSTAVO PINHEIRO e RODRIGO PORTELLA (e mais a colaboração dos atores e atrizes do elenco e da assistente de direção), direção de RODRIGO PORTELLA e um elenco de primeiríssima qualidade, um sexteto de excelentes atores e atrizes de TEATRO, acima de tudo. Jamais um espetáculo como “OS IMPOSTORES” poderia dar errado.
SINOPSE
Num futuro próximo, o Brasil é devastado por uma hecatombe ecológica.
Movimentos de placas tectônicas parece formar uma nova Pangeia*.
A força das águas inunda, destrói, arrasa tudo.
Uma tradicional e rica família brasileira sobrevive ao caos, confinada num suntuoso “bunker”, debaixo da terra, há anos (Ou seriam décadas? Quem sabe, séculos?).
Os membros dessa família estão tocando a vida – ou o que sobrou dela, entre taças de champanha Cristal e latas de caviar Beluga –, salvos do caos externo, até que recebem uma visita inesperada, de um HÓSPEDE (GUILHERME PIVA), que, tal como lá fora, irá mexer com as estruturas dessa família e colocar em xeque a aparente harmonia em que viviam até então.
“OS IMPOSTORES” aborda ruínas éticas e morais, inundadas de água, lama e ambição, embaladas pela lavagem cerebral das promessas vazias de fé.
Em síntese, uma visita inesperada questiona os valores e a aparente harmonia de uma família.
(*Segundo Alfred Wagener e outros autores, supercontinente, hipotético e único, que teria existido, na Terra, até o período cretáceo – aproximadamente, entre 136 milhões e 65 milhões de anos, o qual, ao se fragmentar, teria dado origem aos continentes atuais.)
Que não paire a menor dúvida de que, no meu entendimento, pelo que venho acumulando de experiências, no TEATRO, há um pouco mais de cinco décadas, como ator, professor, crítico e jurado de prêmios, e, em primeiro lugar, um exigente espectador e amante dessa arte maior, antes e acima de tudo, este espetáculo recebe a classificação máxima, estabelecida por mim, em termos de qualidade: OBRA-PRIMA.
A peça é uma gigantesca metáfora, de que se valem os autores do texto, para denunciar o que precisa ser posto em evidência, aquilo que não está fazendo bem às pessoas, ao país. Num momento de trevas profundas, de uma maneira geral, principalmente no campo político-social, que atravessa o Brasil – “página infeliz da nossa História”, que “Vai Passar” (Chico Buarque de Holanda), como outras já passaram -, o texto representa, na verdade, mais que uma metáfora, uma profunda alegoria, muito explícita, para quem for inteligente, de tudo o que estamos vivendo e serve como uma denúncia do inadmissível estado de coisas a que chegamos, ou a que nos permitimos chegar, sob a “égide” de um regime fascista, muito mal maquiado de democracia “para defender os bons costumes e a família brasileira”, com “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.” (Tentando conter a ânsia de vômito.).
GUSTAVO PINHEIRO é, sem nenhum favor, um dos melhores dramaturgos de sua geração, já nos tendo dado provas de seu imenso talento em espetáculos anteriores, todos recentes, aos quais prefiro fazer referência, apropriando-me, com seu consentimento, de um pequeno texto, postado pelo próprio autor, recentemente, em uma rede social: “1) Quando o Fla x Flu ideológico começou a se desenhar, falamos sobre o exercício da tolerância diante da diferença, em “A Tropa”. 2) Quando propuseram a ‘cura gay’, discutimos o desejo, em “Alair”. 3) Enquanto o talibã neopentecostal se organiza, para um tsunâmi, abordamos a hipocrisia de cada dia, em “OS IMPOSTORES”. 4) Quando cada um só tem tempo (ou interesse?) de olhar pra si, trazemos a importância da empatia, em “Relâmpago Cifrado. (O último espetáculo da relação acabou de estrear no Teatro Petra Gold; assistirei a ele nesta semana.). É por isso que o poder não gosta da gente.”. É importante frisar que o texto de “OS IMPOSTORES” não foi escrito apenas por GUSTAVO, como já disse, anteriormente, sobre o que voltarei a falar adiante.
Se “não gostam”, o motivo é muito simples e claro: é porque o dramaturgo incomoda o poder, os poderosos, pressionando, fortemente, o dedo nas feridas, que “eles” preferiam que ficassem camufladas, embaixo do tapete. GUSTAVO não poupa ninguém e, com um profundo domínio das palavras e da boa técnica de construir diálogos e engendrar excelentes enredos, urdiduras, roteiros, lança-se, de peito aberto, desafiando o poder autoritário e burro, cruel e dissimulado, com seus textos cheios de verdades e provocações, propondo, ao espectador atento, muitas reflexões, como em todos os seus escritos e, agora, com bastante ênfase, neste “OS IMPOSTORES”.
Transcrevo, agora, um comentário de CLÁUDIA MARQUES, produtora e idealizadora da montagem, ao lado de GUSTAVO, extraído do “release”, enviado por NEY MOTTA – CONTEMPORÂNEA COMUNICAÇÃO – ASSESSORIA DE IMPRENSA): “Embusteiros, falazes, dolosos, enganadores, mentirosos, patranheiros, sub-reptícios, trapaceiros, IMPOSTORES! Pessoas que encontramos por todos os lugares: na padaria do lado de casa e no metrô, nas cadeiras de espera do atendimento do banco e nas filas dos supermercados. Eles estão por aí. Pessoas que se aproveitam dos buracos da alma e do vazio no coração. Impostores são predadores, mas podem ser presas também.”.
O texto, um verdadeiro primor, me atingiu em cheio, arrebatou-me, desde a primeira cena, porque trata de jogar muita luz sobre “o perigo que nos ronda, quando estamos vulneráveis e frágeis, de falar sobre opressão e oprimido e sobre a importância de estarmos fortalecidos e atentos aos sinais” (Também são palavras de CLÁUDIA.). E é exatamente assim que nos sentimos no momento: vulneráveis e frágeis, diante de tanto horror que nos cerca; horror que, cruelmente, da forma mais vil possível, vem estraçalhando e tentando destruir a cultura, neste país, construída, ao longo do tempo, com muito sacrifício, muito suor e lágrimas, a despeito do nosso poder de resistência, o qual não sabemos até onde, ou se, nos levará à vitória. Mas só não podemos perder a fé e a força. “Ninguém solta o rim de ninguém!” (GLÓRIA, personagem de CAROL PISMEL, na peça.).
Não bastasse tudo isso, há um outro fator, relativo ao texto, que me fez aplaudi-lo de pé, que é o fato de ele conter muito do Teatro do Absurdo, um movimento que sempre me chamou a atenção e pelo qual nutro uma paixão incontida.
A peça chega ao público como baseada num clássico da dramaturgia universal, “Tartufo” (ou “O Impostor”), escrita pelo “Pai da Comédia Francesa” (Eu diria: um mestre da comédia satírica.), Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, levada à cena, pela primeira vez, em 1664. A peça aborda uma impostura, no caso, a religiosa, abrindo fogo contra os hipócritas e os dissimulados. O texto aqui analisado é uma livre adaptação daquele e, neste, o que não falta, também, é hipocrisia e dissimulação, tão ativas na moderna sociedade brasileira. Todos os dias, quando acordamos, nos damos conta das mais diversas imposturas cometidas contra o povo, sejam elas religiosas, morais e éticas, partidas de quem deveria ser exemplo de probidade e justiça, como os políticos, principalmente. Apenas para quem não conhece o clássico de Molière, vale dizer que a trama de seu “Tartufo” gira em torno de uma família que recebe a visita de um homem dissimulado, capaz de desestabilizar a dinâmica daquele grupo social. Isso também ocorre, em “OS IMPOSTORES”. Diz GUSTAVO PINHEIRO: “Minha sensação, como autor, é que ‘coloquei a bola no campo’, trazendo temas tão atuais, para discussão neste grupo de profissionais extremamente inteligentes e estimulantes. A cada novo ensaio, surgiam muitas ótimas ideias e caminhos, num trabalho verdadeiramente colaborativo, que dialoga com o Brasil contemporâneo. É como se disséssemos: ‘Molière, querido, obrigado pela sugestão de enredo. Daqui em diante, é com a gente’”. O texto que vemos e ouvimos, em cena, está distante do original, na medida em que foi ganhando, a cada ensaio, novos contornos, um “upgrade”. E continua, o dramaturgo: “Se alguém me perguntar qual o gênero dessa peça, eu direi IRONIA, uma narrativa que opera na oposição, no atrito e na gozação.”.
O Teatro do Absurdo” está presente nesta obra, por ser difícil imaginar uma família que, por mais rica que seja, consiga viver dentro de um “bunker”, por décadas, sem sair, contando com estoques intermináveis de combustível, água, mantimentos e até oxigênio. Não faltam litros infindáveis de champanha Cristal, o mesmo podendo ser dito com relação a um descomunal estoque de latas de caviar Beluga. Sem falar numa personagem que trabalha, para essa família, há dezenas de gerações; ou seja, não envelhece, tendo servido ao pai do chefe da família, NETO JÚNIOR FILHO (TAIRONE VALE), ao seu avô, bisavô… Por verdadeiro, a personagem da empregada, BABÁ (SUZANA NASCIMENTO), representada por uma só pessoa, significa a mão de obra que sempre foi escravizada pela classe dominante (Foi? Não é mais?). Ainda convivem, absurda e harmoniosamente, enfurnados no “bunker” uma jovem, CAMILLE (PRI HELENA), que tenta salvar o planeta; uma mulher, a mãe, GLÓRIA (CAROLINA PISMEL), viciada em ansiolíticos; e um homem, envolvido em uma paixão compulsiva, AMADO (MURILO SAMPAIO), enquanto outro quer recuperar o poder perdido. E por achar pouco, a dramaturgia ainda faz chegar, de forma inexplicável, àquele lugar de refúgio, um homem, o HÓSPEDE (GUILHERME PIVA), alguém querendo se aproveitar das fragilidades alheias, para tirar alguma vantagem. “Isso seria um verdadeiro absurdo, se não fosse uma ironia”, comenta o diretor da peça.
Nada mais havendo a dizer sobre o magnífico e inspiradíssimo texto, passemos aos demais elementos da montagem, começando pela direção. RODRIGO PORTELLA é um dos mais conceituados diretores do momento. Já o vem sendo, há um bom tempo, e isso é uma unanimidade. Vencedor de vários prêmios de TEATRO e detentor de inúmeras indicações a outros, sua assinatura, como encenador, está presente em alguns dos maiores sucessos teatrais, recentes, de público e de crítica, a começar pelo premiadíssimo “Tom na Fazenda” (2017), que ganhou, inclusive, um prêmio no exterior, da Associação de Críticos de Montreal (Canadá), onde o espetáculo foi apresentado, a convite local. RODRIGO, em 26 anos de carreira, dirigiu 22 espetáculos e escreveu 8 peças teatrais, todas imperdíveis, como “Uma História oficial” (2012) “Antes da Chuva” (2014), “Alice Mandou Um Beijo” (2016), “Insetos” (2018), e “As Crianças” (2019). Em 2020, vai dirigir um espetáculo encomendado pelo Festival de Curitiba, uma produção do Teatro Guaíra e do Festival de Curitiba, para estrear durante o Festival, em cujo trabalho já está mergulhado.
Uma das marcas de seu ofício de diretor é o imenso poder de criatividade e a postura de deixar o ator “ser como ele é”, fazer fluir a sua essência, exercitar e explorar a sua intuição. Isso significa que, apesar do seu reconhecido rigor e seriedade, naquilo que executa, sabendo o que faz e o que quer, por excesso de responsabilidade e amor à profissão, RODRIGO dá liberdade, a seu elenco, para cada um criar e sugerir o que lhe conferir mais conforto, na concretização do personagem. Amigo de dezenas de atores, muitos dos quais já foram dirigidos por PORTELLA, afirmo que todos o têm como um grande mestre, sem falar em outras tantas dezenas que dariam tudo para serem dirigidos por ele. Seria como um “sonho de consumo” para qualquer ator/atriz. A opção por um palco quase totalmente livre, aproveitando todo o seu espaço, sem coxias, sendo o limite de trás a própria parede do Teatro, com sua gigantesca porta, devidamente aproveitada, na encenação, confere ao “bunker” uma dimensão de extrema importância, na grandeza física e na sua função. Suas marcações são formidáveis e, pelo fato de fazer com que o elenco atue utilizando microfones, acertadamente, distribui as cenas por todo o espaço cênico, inclusive o fundo do palco e as coxias, que ficam expostas, por trás de duas cortinas de fitas largas de plástico transparente.
A escolha do elenco não poderia ser mais acertada. Parece coisa de novela, quando os autores escrevem personagens para determinados atores e atrizes. Assim é o que me parece, neste espetáculo. Cada personagem se encaixa, perfeitamente, em cada um que o vive. Ou será o contrário? Não importa. O que interessa é que todos, sem exceção, demonstram muita segurança e verdade, quando vestidos de seus representados.
Apesar da homogeneidade, nas atuações, em função da importância de seu personagem, o HÓSPEDE (Providencialmente, anônimo.), GUILHERME PIVA se destaca, no papel do homem misterioso, desconhecido, que, por força do surrealismo (?), consegue invadir o “bunker” e mexer com a vida de todos os seus habitantes. É o que se pode chamar de um “elemento catalisador” (“Catálise” vem do grego “katalysis” e significa “decomposição”, “dissolução”.). Como um “anjo apocalíptico”, PIVA dosa, com muita propriedade, todas as “qualidades/defeitos” concernentes ao personagem. Sabe ser sedutor, sarcástico, perspicaz, perverso, de acordo com a sua conveniência.
Só para reforçar, os demais participantes do elenco são TAIRONE VALE (NETO JÚNIOR FILHO), o marido; CAROLINA PISMEL (GLÓRIA), a esposa; PRI HELENA (CAMILLE), a filha; SUZANA NASCIMENTO (BABÁ), a empregada; e MURILO SAMPAIO (AMADO), o sobrinho, postulante à mão da prima. Cada personagem tem características bem distintas, uns dos outros, e todos são extremamente patéticos e esbanjam traços patológicos, em termos de estrutura interna, psíquica. Reafirmo que é, para o diretor e o público, um privilégio a reunião de um elenco tão talentoso.
Como cenário, assinado por JÚLIA DECCACHE, apenas uma enorme mesa, retangular, a qual, sobre rodas, é deslocada, o tempo inteiro, por todo o espaço cênico, servindo a várias utilidades, e um carrinho de chá, carregado de garrafas, copos, taças e outros pequenos objetos. Nas laterais, pendem, do teto, duas largas cortinas de plástico transparente, em fitas também largas, fazendo as vezes de tapadeiras, sem, propositalmente, tapar nada, porque tudo deve estar exposto.
A iluminação, neste espetáculo, dialoga, direta e ininterruptamente, com a cenografia, da primeira à última cena, gerando momentos de enriquecedora beleza plástica. A luz vem com a assinatura de ANA LUZIA MOLINARI DE SIMONI.
Merecem registro, também, a acertada direção musical, a cargo de MARCELLO ALONSO NEVES, os corretos figurinos, de TIAGO RIBEIRO, o visagismo, de VITOR MARTINEZ; e a preparação corporal, de TONI RODRIGUES.
A viabilidade deste espetáculo deve muito a CLÁUDIA MARQUES, sócia diretora da Fábrica de Eventos, produtora com olhar artístico sensível e agregador, há 26 anos envolvida com o universo do TEATRO, produtora, também idealizadora da montagem e diretora de produção.
Ao ler o programa da peça, antes do início da encenação, hábito meu e que – penso – deveria ser seguido por todos, logo que chegam ao Teatro, chamou-me muito a atenção o texto escrito por RODRIGO PORTELLA, em forma de uma carta a seu pequeno filho, falando do espetáculo e o que ele representa hoje e representará, para o pequeno, quando este for adulto. Cheguei às lágrimas e era minha intenção reproduzi-lo aqui, entretanto o diretor desaprovou a ideia, o que respeito totalmente, justificando que gostaria de que o público o lesse também, por sua inquestionável importância, para quem vai assistir à peça, antes de seu início. Obviamente, fiquei só na vontade, mas aproveito para criticar, negativamente, a grande maioria dos que vão ao Teatro, com relação aos programas de peças. Raríssimas pessoas os leem, muitas o amassam e ficam doidas para se verem livres deles e algumas os descartam, abandonando-os sobre as poltronas, no chão e, até mesmo, dentro dos banheiros, o que considero lastimável. Sendo assim, é uma pena que apenas poucos, como eu, vão se deliciar e se emocionar com o belíssimo texto de RODRIGO PORTELLA, no corpo do programa da peça. Fica a dica: LEIAM-NO!!!
Para a minha classificação pessoal, relativa à qualidade do espetáculo, circulo entre sete categorias, a saber: péssimo, ruim, regular, bom, muito bom, ótimo e OBRA-PRIMA. Sem pensar duas vezes, com muita convicção, guardo “OS IMPOSTORES” no último escaninho citado, o “top” do meu “ranking”, como já disse lá em cima, motivo pelo qual recomendo, com o maior empenho, o espetáculo.
E VAMOS AO TEATRO!!!
OCUPEMOS TODAS AS SALAS DE ESPETÁCULO DO BRASIL!!!
A ARTE EDUCA E CONSTRÓI!!!
RESISTAMOS!!!
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CENSURA NUNCA MAIS!!!
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