1986. Este, sem dúvida, foi um ano marcante na vida de Rogério Freitas. Ao contrário da maioria dos artistas (e dos profissionais em geral), ele não iniciou a carreira ainda jovem. Hoje com 62 anos, já tinha 30 quando largou uma posição de estabilidade na engenharia civil para dedicar-se exclusivamente ao teatro e estrear “Café”, seu primeiro espetáculo. Para compensar o início tardio nas artes cênicas – e a ousadia da reviravolta – o destino foi lhe dando um trabalho atrás do outro, a ponto de chegar aos 32 anos de palco com a expressiva marca de 70 peças e nenhuma ponta de arrependimento pela mudança.
— Comecei do zero. Passei por problemas, mas pensava que era aquilo que queria. Considero um renascimento, não me arrependo, trouxe muitas coisas boas… Se não fosse o teatro, que triste eu seria por estar num escritório de engenharia por 30 e tantos anos. Não consigo viver de outra coisa — garante o ator natural de Angra dos Reis, em entrevista ao RIO ENCENA, para a seção “Perfis”.
Neste total de 70 espetáculos, estão “Esperando Godot”(1991), que Rogério considera um dos mais marcantes da carreira, “O Rei Midas” (2003), “O Beijo no Asfalto” (2012) e “Vianinha conta o último combate do homem comum”, que ele reestreia neste sábado (07), às 19h, no Teatro da Caixa Nelson Rodrigues, no Centro.
No elenco desde 2016 – quando foi indicado ao lado de Vera Novello ao Prêmio Especial da Fita (Festa Internacional de Teatro de Angra) pela atuação dos protagonistas – Rogério vive Souza, um aposentado em situação delicada, que representa o quadro do idoso no Brasil. Com mais de seis décadas de vida, ele, por vezes, pensa na relação arte x realidade e, com razão, se preocupa.
— Eu com 62, tenho meus questionamentos, de como tenho me preparado para viver a velhice. O Souza passa por problemas nos texto dos anos 70, que nós passamos agora. “Vianinha” é em cima da realidade — destaca Rogério, que fala muito mais sobre sua carreira e seus pontos de vista na entrevista abaixo:
Espetáculo mais marcante da carreira?
Difícil dizer por que cada um marca de uma forma. Tem aquele jargão que diz que o mais marcante é o do momento, porque é aquele no qual você está ligado e colocando esforços. Mas posso destacar um trabalho de 1991 que me de um grande prazer, que foi “Esperando Godot”, com Moacir Chaves na direção. Foi um grande marco! Primeiro pelo texto de Samuel Beckett (1906-1989), que é um clássico da dramaturgia internacional. E em 91. Eu estava em início de carreira, e fazer um trabalho assim no início é legal. E depois pela repercussão do meu trabalho na época. Agora, tem muitos outros… Os trabalhos que fiz com o (ator e diretor) Sergio Britto (1923-2011) foram maravilhosos. “A Festa de Aniversário”, do Harold Pinter (1930-2008), que fiz ano passado, também foi muito marcante.
Um fracasso?
Não consigo apontar um apenas. Até porque aquilo que pode se considerar fracasso, ainda é um aprendizado. O que posso dizer é que no inicio de carreira, em relação a público, tive que panfletar muito, botar público de graça para dentro do teatro, muitas vezes ter uma pessoa ou duas na plateia… Acho que todos passaram por isso. Mas eu espero não passar mais (risos).
Trabalho dos sonhos?
Tem um personagem que eu gostaria de fazer que é a mãe de “Mãe Coragem e Seus Filhos”, do Bertolt Brecht (1898-1953). É um grande personagem que pode ser interpretado por homem ou mulher, numa boa. Só não sei se seria chamado de louco por querer fazer esse personagem. Não sei como puristas e estudiosos de Brecht veriam isso (risos).
Não se vê em que tipo de trabalho?
Acha que teria dificuldades num trabalho em que precisasse dançar com excelência. Quando é coreografia, ensaiando bastante, a gente acaba fazendo .Mas com excelência, seria uma dificuldade. E também acontece o seguinte: muitas vezes me chamam para algo, eu me pergunto se tenho capacidade para aquilo, mas se chamaram, é porque acham que posso. E outra coisa: se você tem um personagem que tripudia, que faz uma crítica, tudo certo! Agora, se vai tripudiar só por tripudiar, é óbvio que eu não aceitaria. O personagem tem que estar inserido num contexto que traga uma crítica.
Como recebe as críticas em geral?
Adoro crítica! Lógico que as boas, você guarda com carinho. Já as outras, para mim, são importantes, porque eu reflito, seja as especializadas ou de amigos. Quero um retorno, porque a gente faz teatro para isso também. Já mudei coisas pela visão crítica de pessoas, coisas que me acrescentaram. Às vezes, o personagem está indo por um lado, aí a pessoa diz que poderia ir por outro, e eu digo: “Você tem razão”. É importante é somar, mas sem descaracterizar. É claro que tenho um filtro.
Uma referência no teatro?
(O ator e diretor) Rubens Corrêa (1931-1996). Ele dispensa comentários. Era f… Era de uma entrega… É uma pena que muitas pessoas não puderam conhecê-lo, porque ele morreu muito cedo. Ele conseguia tirar uma humanidade dos personagens que era incrível. Rubens Corrêa, Rubens Corrêa, Rubens Corrêa!
Um gênero de preferência?
Isso depende da fase atual. Às vezes, você faz uma comédia atrás da outra, e sente saudade de um drama. Ou vice-versa. Não tenho preferência, porque acho legal passas por todos os gêneros. E eu tenho feito textos que são grandes dramas, mas com muito humor. É o caso do “Vianinha”, que trata de problemas sérios, mas com humor. Aliás, muitos textos contemporâneos, mas clássicos, como o próprio “Vianinha”, trazem muito isso hoje, as duas coisas. Então você acaba se satisfazendo.
Maior desafio na carreira de um artista de teatro?
Viver dele. Principalmente, nos dias de hoje, que estão cada vez mais conturbados. O artista não consegue ter uma tranquilidade para dar sequência nos trabalhos, porque tem o emocional, o financeiro… Se você se dedica a outra coisa para complementar renda, você perde tempo e dedicação à arte. É muito complicado. A escassez de patrocínio está cada vez maior. E a coisa vai se agravando, porque a cultura é sempre levada a um degrau inferior. É um efeito que vem em cadeia, porque você não entra numa recessão e sai da noite para o dia. Se corta um incentivo hoje, isso reflete lá na frente. Parece que os governantes veem a cultura como entretenimento, não como a identidade de um povo. Isso me assusta, porque o despreparo é grande. Acho que a fase em que estamos, não sei se viverei para vê-la mudar. Isso vai ser lento. Mas a mudança é necessária. Segurança e saúde são imediatas, mas tem a base da educação e da cultura paralela.
Já pensou em desistir da carreira?
Desistir é difícil. Depois de chegar aos 62 anos, fazendo teatro há 30, vou fazer o quê? Tem aquela coisa do quanto você se preparou para viver essa idade. Você não tem isso muito claro quando é mais novo. Eu quero uma coisa que me dê garantia, sim, mas que tipo de mudança pode fazer me dar isso de imediato? Você vai fazendo coisinhas para somar na renda, pra ir sobrevivendo a isso tudo. Comecei mais velho, depois de desistir de uma profissão sólida na engenharia civil, para ser ator. Chegou uma hora que vi que não dava para conciliar as duas coisas. Comecei do zero. Passei por problemas, mas pensava que era aquilo que queria. Considero um renascimento, não me arrependo, trouxe muitas coisas boas. Então, a gente pensa que é difícil, mas não pensa em desistir.
Se não trabalhasse com teatro, seria…
Se não fosse o teatro, que triste eu seria por estar num escritório de engenharia por 30 e tantos anos. Não consigo viver de outra coisa. Falamos sobre a parte financeira, mas tem a realização que é fantástica. Me considero realizado. Fiz grandes personagens, e o Souza, do “Vianinha”, é uma glória. Ele tem particularidades que, mesmo o texto tendo sido escrito nos anos 70, segue atual. É um quadro triste profundo do idoso. E eu com 62, me vejo no lugar dele em muitos aspectos. Depois de aposentado, tendo criado cinco filhos, o Souza não consegue com a sua aposentadoria pagar o aluguel da casa onde morou por 30 anos. Ele se vê uma pessoa sem saber o que fazer da vida, onde vai morar, sem autonomia, a mercê dos filhos… Como fazer agora? Ele passa por coisas incríveis. Eu com 62, tenho meus questionamentos, de como tenho me preparado para viver a velhice. O Souza passa por problemas nos texto dos anos 70, que nós passamos agora. “Vianinha” é em cima da realidade.