Em 2009, a cantora e compositora Adriana Calcanhoto lançava “Partimpim Dois”, CD de canções infantis que dava continuidade ao projeto iniciado com o antecessor “Adriana Partimpim”, de cinco anos antes. Já agora, em 2019, Felipe Lima, ator e empreendedor cultural, estreou no Teatro XP Investimentos, antigo Teatro do Jockey da Gávea, “Baile Partimcundum”, espetáculo inspirado exatamente no disco da artista gaúcha, e que também é uma continuação – “Lá Dentro tem Coisa”, a primeira peça, é de 2017. Mas, afinal, montar um infantil a partir de uma obra de uma década atrás não oferece o risco de não parecer interesse para as crianças de hoje, tampouco para as daquela época? Para o idealizador, a resposta é “não”.
Embora tenha na trilha sonora músicas lançadas num tempo em que redes sociais, selfies, jogos em abundância e celulares ainda não faziam parte do dia-a-dia da criançada, “Baile Partimcundum”, de acordo com Felipe Lima, consegue apresentar uma dramaturgia que consegue, simultaneamente, ser atemporal e tocar em questões do cotidiano atual. Escrita pela dupla Adriana Falcão e Matheus Torreão e dirigida pelo trio Inez Viana, Mariana Lima e Renato Linhares, a peça aborda, por exemplo, as diferentes formas de se constituir uma família, já que a protagonista Isabel, uma menina de 12 anos apaixonada por livros, vive com “duas mães”.
— (A dramaturgia) dialoga com questões presentes nos dias de hoje, tanto para pré-adolescentes, pais, avós, crianças… É absolutamente pertinente. Estamos falando de uma família com duas mães, o que não é novidade, mas está em pauta. É bom para a gente fugir de ver apenas famílias hétero normativas no teatro, no cinema e na TV — observa Felipe, em entrevista ao RIO ENCENA.
Mas se tal risco não assusta, seria viável outro perfil de espectadores, que não apenas filhos com pais, netos com avôs…? Felipe volta a mostrar otimismo ao afirmar que espera, sim, aqueles que eram pequenos 10 anos atrás.
— Talvez tenhamos, sim, essa grata surpresa de outras pessoas que cresceram ouvindo ela — torce o produtor, falando um pouco mais sobre a montagem na entrevista abaixo:
Em algum momento, você teve alguma preocupação com o público, já que as crianças de hoje não eram nascidas em 2009, e quem era criança naquela época não é o alvo dos infantis de hoje?
Nunca tive esse receio. Primeiro, porque a dramaturgia foi escrita neste ano. Ela dialoga com questões presentes hoje, tanto para pré-adolescentes, pais, avós, crianças… A dramaturgia, que é o ponto mais sensível da história, que poderia, sim, fazer uma diferença, foi escrita recentemente. E é até bem moderna, não só a dramaturgia, mas também a encenação proposta pelos diretores. É absolutamente pertinente. Estamos falando de uma família com duas mães, o que não é novidade, mas está em pauta. É bom para a gente fugir de ver apenas famílias hétero normativas no teatro, no cinema e na TV. Então, é um passo muito grande para a gente poder retratar a sociedade brasileira, mundial, atual, com suas várias possibilidades. E também levar em consideração que o CD lançado em 2009 conta com pouquíssimas músicas originais. Várias que a gente usa na peça são de outros artistas. Então tem uma gama de fatos que não interferiram na minha escolha de fazer espetáculo inspirado no CD dela.
E como está esse público? só crianças com pais ou têm ido também jovens que eram pequenos em 2009?
Acabamos de estrear, então só mais para frente vou poder dar essa resposta. Mas espero que sim, que sejamos contemplados por jovens, com crianças que ouviram o CD quando foi lançado e que tenham essa admiração pelo trabalho da Adriana. Eu, por exemplo, sou um dos grandes admirados dela como artista, mulher, pensadora, cantora. Então talvez tenhamos, sim, essa grata surpresa de outras pessoas que cresceram ouvindo ela, esses CDs específicos. Não vou dizer que tenha dado tempo de elas terem se tornados pais, mas acho que a gente pode ter jovens na plateia. Um público infantil, infanto-juvenil, que transita entre 5 e 11 anos, embora a peça tenha um caráter mais pré-adolescente,que, aliás, é um tipo de público difícil de ver em teatro, pela falta de obras que dialoguem com eles. Mas espero uma gama variada de pessoas. O espetáculo tem esse potencial por ser moderna.
A trama é atemporal? Houve, por exemplo, a preocupação em não fazer referência a elementos presentes atualmente na vida das crianças, como celular?
É atemporal e lúdica. A Isabel é vintage para a idade dela nos dias de hoje, porque não é comum pré-adolescentes, jovens e até adultos encantados com literatura. Talvez seja uma parcela restrita da sociedade de hoje, com tantas tecnologias. A forma de interação mudou, então é muito particular falar de uma criança de 12 anos que ainda fantasia nessa idade e se apaixona por um personagem de livro. É uma história atemporal, mas tem uma ou outra brincadeira sobre fazer uma selfie. E também uma das personagens é uma popstar, muito famosa, e ela sempre diz que tem muitos fãs, e a gente faz uma alusão como se ela fosse uma espécie de Beyoncé. Mas isso não é restritivo no caráter de ser atemporal ou não. O que me dá mais sensação de nostalgia é a questão do livro impresso, de papel. Que adolescente no seu aniversário de 12 anos pediria um livro de presente? Talvez eu me surpreenda, mas acho que são pouquíssimos hoje em dia.
Fazer a protagonista ser apaixonada por livros foi proposital, como uma mensagem para crianças de que há uma alternativa à tecnologia?
Desde que pensei na continuação do primeiro projeto, tinha as músicas “Gatinha Manhosa”, que me remete a história de amor, “Trenzinho Caipira”, que remete a despedidas. Então pensei como fazer essa menina que não tem mais nove anos, como na primeira peça, já está na pré-adolescência. Eu não sabia com que idade a Adriana Falcão ia escrever a Isabel, mas, independentemente, disso, pensei nela como uma menina apaixonada. E achei muito singular uma menina apaixonada por um personagem de livro, inventado. Talvez nem ele tenha domínio da própria história. Achei essa conjuntura importante, porque é mais ou menos assim. Quando a gente se apaixona, seja por personagem de livro ou alguém que agente mal conhece – e a paixão tem disso – a gente idealiza muito, cria na cabeça uma fantasia. E isso dialoga com que a Isabel está vivendo. O personagem já tem sua própria história, não vai encontrar com ela. Então tem esse caráter romântico dessa sonhadora.
E a Adriana Calcanhoto? Conversaram com ela sobre esse projeto? Ela assistiu?
A Adriana participa de tudo na verdade, desde a primeira conversa em 2015 sobre primeiro projeto e depois uma provável continuação. E ainda pretendo fazer uma trilogia baseada no Partimpim. Então, obviamente, ela como detentora dos diretos autorais desta obra, foi consultada. Ela é encantada pelo projeto, e deve mesmo ser bacana o artista ter outros artistas inspirados no seu trabalho. Deve ser lisonjeiro. Ela assistiu ao primeiro, adorou, e talvez por isso tenha autorizado o segundo. Ela está em turnê, então não assistiu a este. Mas como eu acredito que este segundo espetáculo vai ter uma vida muito longa, ela vai assistir. O que eu sei é que ela leu o texto e adorou. Ficou encantada com a proposta de dramaturgia, e acho que está super feliz com tudo.