Num mês de janeiro dos anos 1920, nascia o famoso Bloco Carnavalesco do Eu Sozinho, composto unicamente pelo repórter Julio Silva, que desfilou pela cidade do Rio de Janeiro por quase seis décadas. Seria impossível não relembrar esta marca do Carnaval carioca em um ano no qual passaremos a tão esperada “festa da carne” sozinhos e isolados. Ao menos as máscaras estarão garantidas!
Mas do que sentiremos mais falta? Da festa? Das multidões? Do samba na avenida? Na minha humilde opinião, sentiremos falta da fantasia! Fantasia no sentido abstrato mesmo. Nós, povo de teatro e das artes em geral, temos o privilégio de manter sempre aberta a porta para o fantástico, e volta e meia, passamos por ela, para criar, para entreter, para questionar, ou, por vezes, simplesmente, para descansar do mundo real. Como já dizia o poeta: “A arte existe porque a vida não basta”. E não basta mesmo!
Apressamos o tempo, apressamos o passo, transformamos minutos em dinheiro, e este dinheiro, trocamos em mercadorias que se acabam cada vez mais rápido. Evitamos as dores, os sentimentos, os escondemos com remédios, naturalizamos a morte, evitamos o atraso, mas alimentamos o desperdício, e em meio a tudo isso esquecemos de viver. Até que vem a arte e nos arrebata! Cores, luzes, sons, vozes, melodia…Um palco para a imaginação, e a partir daí, compartilhamos sensações, sofremos com sentimentos que não são nossos, rimos do ridículo, do absurdo, do real, choramos pelos fins e nos maravilhamos com os recomeços, e por alguns instantes, nos esquecemos de nós mesmos e somos livres!
“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?”
Ano de pandemia, ano de desgoverno, familiares e amigos partindo sem direito a despedida, desemprego, fome e miséria… Buscar horizonte onde?
Os teatros, há muito tempo apagados, começam a reacender, pouco a pouco… Tudo à distância, e ainda é pouco, mas necessário. E vem chegando o Carnaval… Neste período, teríamos espetáculos prontos, equipes inteiras empregadas e trabalhando a todo o vapor, interromperíamos as sessões, guardaríamos os figurinos de cena, e vestiríamos as fantasias de rua. Nós nos espalharíamos pela cidade e, por alguns dias, seríamos todos artistas enfeitando as calçadas, promovendo a desordem, saindo dos trilhos da moral e dos bons costumes, andaríamos seminus em avenidas engravatadas, rindo e falando alto, e deixaríamos um rastro de purpurina desde o vão do paralelepípedo, até o ralo do chuveiro de casa. Mas neste ano, será só no chuveiro mesmo, e, talvez, nas frestas do piso da sala, no travesseiro, assistindo à banda que não vai passar pela janela, mas pensando nela.
Mas seja como for, será Carnaval e seremos fantasia, não para ignorar as mortes, não para esquecer o medo, nem para esquecer a revolta, mas para gritar na cara dela que não vão nos derrotar, porque arte é luta e é revolução. Será um carnaval solitário, silencioso, tímido, desanimado, enlutado, será um Carnaval que espera, se não Godot, o próximo Carnaval para ser festa, mas que seja arte, que seja fantasia, que seja respiro para a mente e para o espírito, e quando tudo isto passar, nós, artistas, sairemos de trás das cortinas e iremos aonde ainda houver teatro, ou para a praça mesmo arrancar sorrisos e suspiros, expurgar as dores, suscitar a reflexão, e captar mais aliados nesta luta para que não deixemos a cultura morrer e para que consigamos dar às artes o local e a importância que elas merecem. Se não por nós mesmos, por todos vocês.
* A atriz Aline Deluna é colunista convidada do RIO ENCENA