Entre outras definições, tartufo é descrito no Dicio Online como “indivíduo que dissimula ou engana” e “beato falso; devoto enganador”. Como charlatões existem desde que o mundo é mundo, Molière, um dos mais populares dramaturgos da história, escreveu, no distante 1664, “Um Tartufo”, clássico que, desde então, vem sendo encenado à exaustão nos palcos mundo afora. Inclusive, há uma versão para a comédia em cartaz no Teatro Dulcina, no Centro. Mas, como o próprio diretor Bruce Gomlevsky destaca em entrevista ao RIO ENCENA, esqueça clichês e estereótipos que possam te levar de volta para o século XVII. Afinal, a obra do francês segue atual, mas é preciso acompanhar o passar do tempo.
Primeira montagem não realista da Cia Teatro Esplendor, que buscou referências no Expressionismo alemão e no cinema mudo, “Um Tartufo” estreou por aqui em 2018 e, logo de cara, chamou atenção por deixar de lado o famoso texto de Molière para apresentar a trama através apenas das ações físicas dos atores. Ou seja, teatro mudo! Entre os resultados, estão as conquistas do Prêmio Shell de Melhor Iluminação (Elisa Tandetta) e do Prêmio Questão de Crítica para a Cia. Teatro Esplendor, além de outras várias indicações em importantes premiações.
Agora na reestreia, a peça – que marca a primeira vez da trupe no palco desde o início da pandemia – volta a mostrar sua verve contemporânea para recontar a história de um picareta que se passa por um simples devoto religioso a fim de se infiltrar numa família e dar o golpe. E de acordo com Bruce Gomlevsky, memórias e características do próprio elenco também ajudam o espetáculo a não se limitar a temas atemporais – como falsos religiosos, charlatanismo, ética e a influência da religião no convívio familiar – para também abordar outros mais atuais. Por exemplo, diversidade religiosa, fluidez de gênero e poderes paralelos.
Sim, na entrevista, o diretor não chega a dar spoiler para quem ainda não assistiu, mas detalha uma característica do tartufo do século XXI retratado no palco:
— Ele está cercado de milicianos e capangas armados com fuzil — revela o diretor, explicando também o porquê de trazer de volta uma comédia mordaz com pegada política e social neste momento: — Porque é ano de eleição, um ano importante… E nada como o nosso Tartufo para falar do que a gente está vivendo no mundo de hoje.
Leia abaixo a entrevista na íntegra:
A montagem traz alguma adaptação no sentido de contemporaneidade? Por exemplo, fazer referência a algo ou alguém dos tempos atuais?
Sim, até porque tentamos fugir de clichês e estereótipos de como se monta Molière. Os figurinos são contemporâneos e não do século XVII. O nosso Tartufo é um sacerdote de uma religião que a gente não nomeia qual é, mas ele está cercado de milicianos e capangas armados com fuzil. O casal de protagonistas, Valério e Mariana, traz a questão da fluidez de gênero. Ele usa uma peça de roupa dela e vice-versa. O Cleante, que é o tio, é um preto velho, mestre de capoeira. Isso porque não trabalhamos apenas com elementos contemporâneos, mas também com a memória e a subjetividade de cada ator.
Os tartufos de hoje são como os da época de Molière? Ou o passar dos tempos proporcionou mudanças?
As peças do Molière são sempre atuais. Então, Tartufos sempre atuaram em religião política e outras áreas. Não sei dizer se hoje existem mais ou menos tartufos do que na época do Molière. Mas felizmente ou infelizmente, a peça dele é atual, porque o Brasil parece ser o campeão mundial de tartufos.
Por falar em passagem de tempo, o espetáculo é o mesmo da estreia em 2018 ou foi feita alguma mudança?
É o exatamente o mesmo. Ensaiamos nove meses na época da estreia e criamos um espetáculo muito preciso. A partitura de ações físicas é a mesma. Temos três atores que entraram no elenco, mas o espetáculo é o mesmo.
Após o período mais severo da pandemia, o retorno da cia. aos palcos somente agora foi ocasional ou tem uma razão específica?
A gente já começou a trabalhar no nosso novo espetáculo. Começamos online no ano passado e agora já estamos ensaiando presencialmente para a estreia em outubro. Mas como tudo vinha reabrindo, achamos que seria a hora de voltar. E escolhemos “Um Tartufo” pelo momento atual do país, porque é ano de eleição, um ano importante… E nada como o nosso Tartufo para falar do que a gente está vivendo no mundo de hoje.
Por que a opção por uma versão muda em vez de manter o texto da peça original?
Na verdade foi uma descoberta. Seria com texto falado, escrito por Molière. Mas trabalhamos na cia. com improvisos. Então, primeiro, começamos a improvisar nos ensaios sem as falas, buscando mais as ações físicas dos personagens. E isso foi ficando interessante, até que pensamos “e se não tivesse texto falado? Será que público entenderia e se interessaria?”. Ficou tão interessante, que aceitamos o desafio.
Em algum momento, houve algum receio de fazer uma peça muda? Um temor de que o público pudesse rejeitar…
Temor de o público rejeitar, não. O que chegamos a pensar foi usar cartelas, como o cinema mudo costuma fazer. Alguns filmes têm aquelas cartelas com falas das personagens, com títulos de capítulos… Mas a gente achou melhor radicalizar e não explicar nada, a não ser o trabalho físico dos atores. E a história se conta. Acho que a gente conseguiu contar a história sem texto falado. Então, não precisamos de nenhuma muleta nesse sentido. O público entende, gosta e acha muito interessante a nossa proposta.
SERVIÇO
Local: Teatro Dulcina | Endereço: Rua Alcindo Guanabara, 17 – Centro. | Sessões: Sábados e domingos às 19h | Temporada: 06/08 a 28/08 | Elenco: Yasmin Gomlevsky, Gustavo Damasceno, Thiago Guerrante, Ricardo Lopes, Victoria Reis, Glauce Guima, Lucas Garbois e Gustavo Luz | Direção: Bruce Gomlevsky | Classificação: 16 anos | Entrada: R$ 40 (inteira); R$ 20 (meia) | Bilheteria: Sympla ou no teatro de quarta a domingo das 13h às 22h | Gênero: Tragicomédia | Duração: 100 minutos | Capacidade: 250 espectadores
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