Desde que os portugueses chegaram por aqui, a vida dos indígenas nunca mais foi a mesma. Ao longo dos séculos, uma série de abusos, massacres e desrespeito foi se perpetuando e culminando no verdadeiro aniquilamento de diversos coletivos, que, simplesmente, foram apagadas no tempo. Como resultado deste processo, muitas pessoas com antepassados indígenas sequer conseguem tomar conhecimento de tais raízes. É o caso, por exemplo, de Jessica Meireles, protagonista e autora do solo “Maíra – Caminhos Ancestrais”, que faz apenas quatro apresentações no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, a partir de quinta-feira (26) – confira o serviço completo o fim da página.
Segundo dados da Funai (Fundação Nacional do Índio), viviam no Brasil em 1500, aproximadamente, 3 milhões de indígenas, divididos entre mil povos distintos. Já em 2010, de acordo com censo demográfico realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), esta população caiu para 817.963. Ou seja, um apagamento geral na história do país, que ainda acaba se refletindo nas famílias.
Jessica sempre soube que sua bisavó e sua tataravó foram indígenas, mas as informações sobre as antepassadas que chegavam até ela eram muito poucas. Esta escassez, então, serviu como gatilho para que a atriz e dramaturga idealizasse o trabalho – seu primeiro presencial desde o início da pandemia – como uma maneira de buscar suas origens ofuscadas pelo tempo e pelo homem.
— Sempre tive esta questão de querer saber de onde vim, quem eram meus coletivos… Então, o projeto começa com essa busca, assumindo que eu não sei como elas foram. E a partir deste desconhecimento, comecei a fazer pesquisas, sobre coletivos indígenas do Brasil e do Peru, porque minha tataravó era de lá e a minha bisa, da região do Amazonas — explica Jessica, em entrevista ao RIO ENCENA.
A atriz – que se considera afro-indígena por posicionamento político e como uma busca por pertencimento – disse ainda que não vê motivo para possíveis críticas e represálias por estar em cena caracterizada como indígena, mesmo não estando inserida diretamente no universo indígena. Ela destaca ainda que teve a companhia de profissionais especializados na empreitada.
— O processo partiu de um lugar muito sensível. Quando começamos, tentei ser honesta ao ter conversas com o artesão Victor Abel Rodriguez, que fez o cocar e é indígena, com a Tatiana Henrique, que fez a pesquisa para a peça e tem o trabalho fundamentado na cultura indígena. Não tenho a pretensão de tomar para mim uma causa como se fosse a líder desta causa – ressalta a atriz, que buscou inspiração também no antropólogo e historiador Darcy Ribeiro (1922-1997), importante intelectual brasileiro e defensor das causas indígenas (inclusive, o título “Maíra” sai da obra de Darcy).
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Este espetáculo é um elo entre você e suas ancestrais indígenas. De que forma você as leva para o palco?
Ouço falar sobre elas desde criança, mas de forma genérica, com minha minha mãe falando, minha avó, que ainda é viva… Mas sem nenhum tipo de informação de etnia, de cultura, por exemplo. E eu sempre tive esta questão do pertencimento, de saber de onde vim, quem eram meus coletivos… Então, o projeto começa com essa busca, assumindo que eu não sei como elas foram. E a partir deste desconhecimento, comecei a fazer pesquisas, sobre coletivos indígenas do Brasil e do Peru, porque minha tataravó era de lá e a minha bisa, da região do Amazonas. E assim, o trabalho reproduz estes coletivos, mas de uma forma que se comunica com o público, porque a personagem central, resultado destas pesquisas, faz isto. Ela começa dizendo ao público que precisa contar algo antes de partir, porque ela tem a percepção de que é preciso partir para que o novo chegue. Ela é a personificação das minhas ancestrais.
No material de divulgação da peça, você diz que elas foram “apagadas da memória-herança familiar”. Consegue achar uma razão para esse apagamento?
Pela mesma razão de todos os povos e culturas que foram apagados no Brasil. Impossível falar deste espetáculo sem tratar de questões históricas. Assim como tentaram fazer com negros e judeus, fazem com indígenas. O resultado do apagamento é consequência de anos e anos de genocídio étnico. A gente sabe que este processo de apagamento acontece desde 1500. E mesmo passando por outros momentos da história, como a criação da República, alguns povos nunca deixaram de ser marginalizados e tratados como se não tivessem evoluído ou se não pudessem decidir por si só. O espetáculo fala muito disto também, até porque não teria como fugir do assunto. Deste apagamento, que é herança de um projeto.
Enquanto desenvolvia o projeto, você chegou a ter receio de críticas ou represálias de grupos ligados a causas indígenas por não estar inserida diretamente neste universo?
O processo partiu de um lugar muito sensível. Quando começamos, tentei ser honesta ao ter conversas com o artesão Victor Abel Rodriguez, que fez o cocar e é indígena, com a Tatiana Henrique, que fez a pesquisa para a peça e tem o trabalho fundamentado na cultura indígena. Então, a peça não é para tomar a voz de lideranças indígenas. Muito pelo contrário, porque a gente vem como uma mão. Não estou inventando nada, a gente só fala o que aconteceu de verdade. Não tenho a pretensão de tomar para mim uma causa como se fosse uma líder. A minha colocação é: como eu, Jessica, nem tão preta e nem tão indígena, uma mulher que está num limbo racial, consigo trabalhar estas questões sobre qual é o meu pertencimento? Qual é o meu povo? É deste lugar que parto, não do domínio da palavra.
Acha que é uma causa pouco defendida no teatro, levando-se em consideração que estamos num país que teve como primeiros moradores os indígenas?
Sim, acho. Podemos elencar quantas peças no Rio estão falando desta temática. É preciso ter mais engajamentos artísticos nessa parte, mas também cabe ao artista se sentir instigado a falar de tais assuntos. Mas também acho que o teatro deveria abrir mais portas. Não é que falte gente para falar, o que falta é acessibilidade e democratização para que mais artistas possam falar.
E como está sendo esse retorno ao teatro presencial após tanto tempo longe dos palcos?
Em primeiro lugar, tem sempre o grande receio do contato, por todas as questões de segurança. A gente fica preocupado em deixar as pessoas seguras. Então, estamos tomando todas as medidas cabíveis, absolutamente tudo que é possível. E para mim, tem sido uma grande experiência, porque é impossível não pensar nas pessoas que vieram a óbito e não poderão mais estar num teatro. “Caminhos Ancestrais” é também uma oportunidade de agradecer pelos meus amigos que se foram, porque subo no palco por eles.
SERVIÇO
Local: Teatro Glaucio Gill | Endereço: Praça Cardeal Arco Verde, S/N – Copacabana. | Telefone: (21) 2547-7003 | Sessões: Quinta a domingo às 19h | Temporada: 26/08 a 29/08 | Elenco: Jéssica Meireles | Direção: Luana Moreira e Jonyjarp Pontes | Texto: Jéssica Meireles | Classificação: 16 anos | Entrada: R$10 (inteira); R$5 (meia) | Bilheteria: Não informada | Gênero: Drama solo | Duração: Não informada | Capacidade: Não informada
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